A austeridade afetará, em 2015, 6,3
mil milhões de pessoas, ou seja 90% da população mundial.
“Contrariamente à perceção pública” as políticas de
austeridade não se confinam à Europa e, até, se impõem ainda mais
nos chamados 'países em desenvolvimento'. Estas são duas
importantes conclusões do estudo “A Era da Austeridade”. Mas
este estudo ajuda-nos a compreender que vivemos um novo quadro
mundial marcado por políticas de austeridade o que constitui uma
viragem conservadora, acentuando ainda mais as políticas de tipo
neoliberal.
“A Era da Austeridade”
Num estudo publicado em março de 2013,
com o título “A Era da Austeridade” (disponível em
inglês aqui e em
francês aqui), Isabel Ortiz e Matthew Cummins analisam as
medidas de ajustamento tomadas em 184 países e extraem conclusões
importantes sobre a política de austeridade. Os autores,
prosseguindo estudos anteriores, analisaram 314 relatórios do FMI
para 174 países, publicados entre janeiro de 2010 e fevereiro de
2013.
Os autores apontam para a existência,
para já, de três fases nas políticas orçamentais desde a crise
desencadeada em 2007: uma primeira fase, entre 2008 e 2009, de
expansão orçamental, tendo aumentado as despesas com a recuperação
de bancos e do sistema financeiro, mas também com medidas de apoio
ao relançamento da economia e de amortização dos efeitos da crise.
Uma segunda fase, entre 2010 e 2012, de início das restrições
orçamentais e da política de austeridade, e uma terceira fase,
entre 2013 e pelo menos até 2015, de agravamento severo das
políticas de austeridade.
7 tipos de políticas de austeridade
O documento salienta sete tipos de
medidas de austeridade, que estão a ser seguidos por diversos
governos e, na verdade, são orientação do FMI e das principais
instituições mundiais.
Um primeiro tipo é
a eliminação ou redução dos subsídios principalmente em relação
ao combustível, mas também em relação à eletricidade,
alimentação e agricultura. Os autores referem que medidas deste
tipo foram tomadas por 100 governos, sendo 78 de “países em
desenvolvimento” e 22 de “países de rendimento elevado”.
Um segundo tipo é
a redução da massa salarial gasta pelos governos, que acontece em
98 países. Uma medida bem patente em Portugal com os sucessivos
cortes nos salários e subsídios dos trabalhadores da função
pública.
Em terceiro lugar,
o aumento dos impostos sobre o consumo de bens e serviços, presente
em 94 países. É o caso da subida do IVA para 23% verificado em
Portugal.
Em quarto lugar,
os cortes nas reformas, tomados por 86 governos.
Em quinto lugar,
os cortes na segurança social e nas medidas de proteção social.
Medidas deste tipo, têm vindo a ser tomadas em 80 países, entre os
quais Portugal.
Em sexto lugar,
cortes nos sistemas de saúde pública, presentes em 37 países.
Em sétimo lugar,
as alterações na legislação laboral, retirando direitos a quem
trabalha, onde se destacam as medidas para facilitar os
despedimentos.
Estes sete tipos
de medidas estão presentes em Portugal, como sabemos, e se pode ver
no quadro 12 do estudo (página 17), que sublinha que todas elas
também estão a ser tomadas em outros oito países europeus:
Bélgica, Eslováquia, Espanha, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália e
Roménia.
Concentrado na
análise das despesas públicas e das medidas de “ajustamento”, o
estudo não destaca outras medidas que têm acompanhado as políticas
de austeridade e que foram e/ou estão a ser implementadas em muitos
países. Quero apontar apenas uma, marcante no nosso país mas também
em muitos outros países da União Europeia, e não só: as
privatizações. O estudo refere, no entanto, os casos da República
Checa, da Arménia e da Turquia que estão a privatizar parte do seu
sistema público de pensões.
Uma mudança de fundo
O documento
destaca, desde o próprio título, que se está a viver uma mudança
de fundo nas políticas orçamentais aplicadas subsequentemente ao
desencadear da crise de 2007. A seguir a uma fase de expansão
orçamental em 2008 e 2009, verificou-se a mudança.
De onde provém
esta mudança? O estudo destaca que “no início de 2010, os
conselhos do FMI mudaram radicalmente” e refere que dois documentos
daquela instituição “foram os primeiros sinais de uma viragem na
política mundial, que tinha o apoio implícito do G20”.
Através do FMI
foi, assim, lançada a “era da austeridade”. A atenção
mediática convergiu então para “a dívida e os défices
orçamentais”. Porém, como também o estudo assinala, “a dívida
e os défices eram os sintomas da crise e não a causa”, que estava
nos planos de salvação do sistema financeiro, na diminuição das
receitas públicas provocada pela crise e nos planos de relançamento
da economia lançados nos EUA e noutros países.
Apresentada como
de combate à dívida e aos défices públicos, a política de
austeridade transformou as funções sociais do Estado numa “carga
nefasta à competitividade e ao crescimento” económico.
A recentragem do
debate público na dívida e nos défices tem outro efeito assaz
importante: “desvia a atenção pública da causa não resolvida da
crise”, a desregulamentação e atuação dos mercados financeiros
e do setor financeiro mundial.
O resultado desta
política de austeridade é que os custos da crise são lançados
sobre a maioria da população, que se confronta com um agravamento
desmedido das suas condições de vida, marcado pelo aumento do
desemprego, por subidas dos preços de bens essenciais, nomeadamente
da alimentação e da energia, e por uma redução drástica no
acesso aos serviços públicos essenciais (saúde, educação,
segurança social) ou mesmo à sua delapidação, total ou parcial.
Na verdade, a
crise não tem por origem o aumento da dívida e dos défices, o
problema está em grande parte no sistema financeiro e os governos do
mundo inteiro correram em seu socorro e desviaram recursos para tal.
O G20 forneceu “11,7 biliões1
de dólares para salvar o setor financeiro” e 50 países deram 2,4
biliões de dólares em “estímulos fiscais”, assinala o
documento, que conclui que a política de austeridade que está a ser
imposta “não vai ajudar a promover um crescimento robusto capaz de
criar empregos, melhorar o nível de vida ou a coesão social”,
representando mesmo um perigo para a “retoma tanto a nível
nacional como mundial”.
Viragem conservadora
Este estudo dá base para muitas e
importantes reflexões.
As medidas de austeridade provocam uma
viragem em toda a política. A austeridade não se consegue impor aos
povos sem uma viragem autoritária, sem medidas de exceção, sem a
violação do próprio Estado de direito. Uma política que apenas
promete o agravamento das condições de vida da população não
pode ser imposta sem mudanças legislativas de fundo, sem uma mudança
no próprio regime político.
Vencer eleições dizendo “vocês
viverão pior do que viviam antes”, só é possível com restrição
de direitos, divisão das camadas maioritárias da população,
redução da representação eleitoral, repressão e medo.
É essa viragem a que assistimos em boa
parte da Europa e no nosso país. Essa é uma viragem conservadora,
com inevitáveis mudanças sociais de fundo e deslocações políticas
e, naturalmente, eleitorais.
Medidas de cariz neoliberal
As medidas que têm vindo a ser
impostas e o rumo das orientações não constituem uma rotura com as
medidas que o neoliberalismo vem impondo em todo o mundo desde o
início dos anos 80. Pelo contrário, as medidas são de tipo
neoliberal, mas mais extremadas. Analisando os sete tipos de medidas,
acima apontados, verifica-se que nenhum cai fora do cardápio
neoliberal.
Mesmo noutro tipo de medidas tomadas a
constatação é semelhante. É o caso das privatizações.
Por exemplo, medidas prometidas do tipo
de repressão dos offshores
foram apontadas nos anos de expansão orçamental (2008-2009), mas a
orientação escolhida em 2010 varreu-as. O chamado ChinaLeaks
mostra até que ponto a elite do poder político chinês está
envolvida nos paraísos fiscais, tal como o Offshore
Leaks já tinha mostrado como a alta finança e os mais ricos do
mundo precisam deles para se apropriarem de maior fatia das receitas
fiscais roubadas a boa parte do planeta.
O
Tratado Orçamental (TSCG), que encima o processo que vive atualmente
a União Europeia (UE), agrava o colete de forças orçamental que já
fora imposto desde o tratado de Maastricht, em 1992, e é um extremar
da construção neoliberal da UE. Os esforços mais recentes dos EUA
e da União Europeia em termos de tratados económicos de alcance
mundial mostram que, também aí, o que predomina é levar o “livre
comércio” ainda mais longe. É esse o caso do Tratado
Transatlântico2
em negociação. Como assinalam Pascal Morsu e Catherine Samary, num
artigo
publicado recentemente, “após um forte intervencionismo estatal
temperado com os discursos neoliberais anteriores, assiste-se a uma
nova acentuação das políticas neoliberais”.
Destas duas reflexões podemos extrair
uma conclusão, sem nunca nos esquecermos que vivemos em tempos de
grande instabilidade: não estamos no mesmo quadro político mundial
que vigorou entre os anos 80 do século XX e 2008, o novo quadro é
marcado por políticas de austeridade o que constitui uma viragem
conservadora, acentuando ainda mais as políticas de tipo neoliberal.
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11,7 triliões em inglês - 11.700.000 milhões de dólares
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