Em 1968, o diretor da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), William Gaud, anunciava uma revolução tecnológica para aumentar a produtividade agrícola. Chamou-lhe a “revolução verde”, por oposição às violentas revoluções “vermelha”, na URSS, e “branca”, no Irão. O discurso marcou uma época em que o capitalismo se defendia das críticas com base na sua suposta capacidade de criar tecnologias que resolvessem todos os seus males. Hoje assistimos ao mesmo tipo de discurso, baseado no mesmo tipo de erros.
A “revolução verde” trouxe ao
mundo um notável aumento da produtividade agrícola, mas este avanço
foi conseguido através do aumento do uso de energia fóssil e de
químicos que poluem os solos e os rios, além de uma redução da
diversidade de espécies vegetais cultivadas e de um aumento do poder
de um punhado de empresas sobre a produção de alimentos. Para mais,
apesar do aumento da produção, quase mil milhões de pessoas no
mundo estão hoje subnutridas, ao qual se soma outro tanto de pessoas
com deficiências nutricionais. No outro extremo, 1.3 mil milhões de
pessoas são obesas, fruto de dietas nutricionalmente inadequadas. Ou
seja, metade da população mundial está mal servida pelo sistema
alimentar que temos hoje.1
O sistema alimentar é caraterizado,
acima de tudo, pelo desperdício. A FAO estima que 1.3 mil milhões
de toneladas de alimentos produzidos não são consumidos.2
Nos países mais desenvolvidos, o desperdício ocorre sobretudo na
distribuição e consumo de alimentos e é tanto maior quanto maior a
fatia da distribuição entregue às grandes superfícies e menor a
importância do comércio local na distribuição. No Reino Unido,
por exemplo, a Tesco admitiu recentemente que dois terços das
saladas embaladas, metade do pão e 40% das maçãs nas prateleiras
dos seus supermercados vão parar ao lixo.3 Estes dados
mostram como práticas comuns em supermercados, como vender produtos
frescos cortados e embalados, com prazo de validade impresso, levam a
que uma maior fatia da produção alimentar tenha como destino o
caixote do lixo, em vez do estômago.
Mas o desperdício de alimentos não se
estende apenas às consequências de práticas comerciais
insustentáveis, sendo ainda mais relevante a forma irracional como
os recursos são alocados no sistema alimentar. O exemplo mais
dramático é dado pelos cultivos destinados à produção de rações
para animais. Cerca de 53% da produção mundial de oleaginosas e 38%
da produção mundial de cereais é consumida pelos animais usados na
pecuária, sendo estas percentagens 72% e 67% para a Europa
Ocidental, respetivamente.4 Podemos compreender o
desperdício inerente ao crescente consumo de carne com um exemplo
numérico simples: com a soja cultivada num hectare de terreno é
possível obter mais de 430 quilos de proteína, mas se a soja for
usada na alimentação de gado apenas é possível obter cerca de 62
quilos de proteína, sete vezes menos5.
Há também muito a fazer para
assegurar a produção de alimentos sem recorrer a químicos,
transgénicos ou outras soluções tecnológicas com impactos
negativos no meio ambiente. Um estudo publicado recentemente na
Nature estimou que a produtividade da maior parte das
culturas pode ser aumentada em 40 a 70% meramente usando de forma
mais racional a água e os fertilizantes. A sugestão dos autores é
reduzir o uso de fertilizantes na Europa Ocidental, nos EUA e na
China, onde é excessivo, e aumentar nos países africanos. Desta
forma, será possível alimentar o mundo em 2050, mesmo que a procura
de alimentos duplique, sem esgotar a água potável e os solos
aráveis.6
Mas é possível ir ainda mais longe e
assegurar que a procura de alimentos mundial é satisfeita sem
qualquer recurso a químicos ou transgénicos. Em 2007, um
meta-estudo da Universidade do Michigan analisou 293 estudos
publicados comparando a produtividade da produção biológica com
não-biológica. O estudo concluiu que a agricultura biológica pode
ser até três vezes mais produtiva nos países menos desenvolvidos e
atinge produtividades comparáveis à agricultura convencional nos
países desenvolvidos.7 A diferença de produtividades
explica-se pela intensidade do uso do trabalho na produção: quanto
mais intensivo em trabalho for o método de produção, maior a
produtividade por hectare. Como a substituição de trabalho humano
por máquinas é compensadora nos países mais desenvolvidos, onde há
maior acesso a tecnologia e energia e os salários são mais altos, a
lógica de produção capitalista privilegia métodos de produção
mais intensivos em energia, mesmo que resultem numa redução do
emprego e da produtividade da terra.
Em suma, reduzindo o desperdício
alimentar, o consumo de carne e o uso de químicos é possível
alimentar o mundo sem destruir o planeta. Tudo isto implica enfrentar
os interesses das grandes superfícies comerciais e da agroindústria,
privilegiando antes a agricultura familiar e o comércio de
proximidade. Apesar de revolucionárias, estas ideias são já tão
evidentes que mesmo organizações internacionais associadas à ONU
já as aceitam.8 Aqui sim, encontra-se a semente de uma
verdadeira revolução verde.
1 – ETC Group, “Who will feed us?”, http://www.etcgroup.org/content/who-will-feed-us
2 – FAO, “O desperdício alimentar tem consequências ao nível do clima, da água, da terra e da biodiversidade – novo estudo da FAO”, http://www.fao.org/news/story/pt/item/204029/icode/
3 – BBC, “Tesco says almost 30,000 tonnes of food 'wasted'”, http://www.bbc.com/news/uk-24603008
4 – Karl-Heinz Erb et al, 2012, “The Impact of Industrial Grain Fed Livestock Production on Food Security: an extended literature review”, http://www.fao.org/fileadmin/user_upload/animalwelfare/the_impact_of_industrial_grain_fed_livestock_production_on_food_security_2012.pdf
5 - Compassion in World Farming, “Reduzir o consumo de carne: uma reforma urgente.”, http://www.ciwf.org.uk/includes/documents/cm_docs/2008/r/reduzir_o_consumo_de_carne_uma_reforma_urgente_elm.pdf
6 – Science Daily, “Hope of greater global food output, less environmental impact of agriculture”, http://www.sciencedaily.com/releases/2012/08/120829151241.htm
7 – Reuters, “Organic Farming Yields as Good or Better – Study”, http://www.reuters.com/article/2007/07/10/us-farming-organic-idUSN1036065820070710
8 – Até mesmo a UNCTAD, possivelmente a entidade da ONU mais neoliberal, reconhece que é necessário diversificar a produção, apoiar a pequena produção e dinamizar mercados locais, dando especial atenção ao empoderamento das mulheres. Ver http://unctad.org/en/pages/PublicationWebflyer.aspx?publicationid=666
Publicado originalmente no esquerda.net.
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