01 abril 2014

Austeridade: a inevitabilizar desde (antes de) 1943

 As políticas de austeridade, em nome da redução do défice e da dívida, e a liberalização do mercado de trabalho são-nos hoje apresentadas como inevitáveis para a saída da crise, para a criação de emprego e o crescimento económico. Michal Kalecki escreveu, em 1943, um artigo que, como poucos outros, nos mostra como as inevitabilidades de hoje são, afinal, as inevitabilidades de sempre. Politicas não evitáveis porque a alteração das relações de classe é tão indesejável hoje como era em 1943.

O artigo descreve os mecanismos ao dispor de um governo para criar pleno emprego. Argumenta ele –e a maioria dos economistas do pós Guerra – que através de investimento público (nomeadamente em infra estruturas) ou de subsidiação do consumo das famílias (através de menos impostos, apoios sociais e controlo de preços de bens essenciais), um governo pode gerar a procura de bens e serviços necessária para atingir um ponto em que a economia se encontra em pleno emprego.

Kalecki nota que o contraponto a esta teoria económica é elaborado, na sua maioria, por experts económicos ligados à banca e à industria. Este facto sugere, argumenta ele, “que existe um background político na oposição à doutrina do pleno emprego, apesar de os argumentos avançados serem económicos. Não quer isto dizer que as pessoas que os apresentam não acreditem na sua economia, por pobre que seja. Mas ignorância obstinada é normalmente uma manifestação de motivos políticos subjacentes.”

Há, no entanto, um paradoxo que reforça a intuição de que a oposição a políticas públicas de pleno emprego é sobretudo um problema político de “primeira importância”. Durante a Grande Depressão, tanto nos EUA como na Alemanha pré-nazi, os grandes poderes capitalistas opunham-se determinantemente a qualquer tipo de intervenção estatal que fosse no sentido da criação de mais emprego. Esta posição é difícil de perceber, uma vez que mais emprego implica melhores condições para os trabalhadores mas também mais riqueza e lucros para os detentores do capital. Porquê então rejeitar a hipótese de mais crescimento económico, com todos os benefícios que lhe estão subjacentes?

Há, de acordo com Kalecki, três argumentos principais para que assim seja: i) o desagrado em relação à intervenção governamental nas questões do emprego, seja ela qual for; ii) o desagrado em relação à direcção dos gastos do governo; iii) o desagrado relativamente às mudanças politicas e sociais resultantes da manutenção do pleno emprego.

Em primeiro lugar, por que é que industriais e banqueiros não gostam de políticas de criação de emprego? Porque num sistema de mercado a criação de actividade económica e, consequentemente, de postos de trabalho, depende dos níveis de confiança dos investidores. Se esta confiança for abalada, por exemplo devido a taxas sobre os capitais, a consequência será o aumento do desemprego. A manutenção da confiança como forma de gerar emprego funciona como uma arma de permanente ameaça sobre as políticas públicas, que deixaria de funcionar se os governos aprendessem o mecanismo para gerar emprego por meios próprios. “A função social da doutrina das ‘finanças saudáveis [do Estado]’ é fazer o nível de emprego depender do ‘estado de confiança’ ”.

Em segundo lugar, o tipo de investimento levado a cabo pelo Governo. É verdade que, na maioria dos casos, o investimento público é direccionado para áreas onde não existe provisão privada, e por isso não compete com as empresas nem ameaça os seus lucros. Mas pode acontecer que, na prossecução do interesse público, os governos sejam tentados a nacionalizar ou controlar outras áreas da economia que são caras aos interesses privados (transportes, saúde ou sectores estratégicos), e essa possibilidade deve ser travada.

Poder-se-ia esperar então que políticas de subsídio ao consumo fossem melhor aceites pelas elites económicas, mas neste caso prevalece a ética moral capitalista: ‘deves ganhar o teu pão com o teu próprio suor’, a não ser que por acaso tenhas propriedade privada, ironiza Kalecki. Há, na verdade, um outro argumento que se pode acrescentar a este. O aumento do rendimento familiar por via de apoio estatal levaria necessariamente a um aumento dos salários na economia[1].

E este motivo está na base do terceiro argumento: o que é que aconteceria no caso de uma economia que vivesse num estado permanente de pleno emprego? O desemprego deixaria de funcionar como um mecanismo disciplinador da economia: a classe trabalhadora ganharia novas e melhores condições para exigir mais direitos e salários mais altos; o poder absoluto do patronato seria posto em causa e isso abriria as portas a alterações profundas na estrutura das sociedades capitalistas. Isto tudo, claro, a par de um potencial e subjacente aumento da atividade económica e dos lucros empresariais, provenientes de mais investimento e mais consumo. Mas a verdade é que “ a ‘disciplina nas fábricas’ e a ‘política de estabilidade’ são muito mais apreciadas pelos líderes dos negócios que os lucros. O seu instinto de classe diz-lhes que o pleno emprego duradouro é nocivo e que o desemprego é uma parte integrante do sistema capitalista ‘normal’”.

E é assim que Kalecki, neste brilhante artigo escrito em 1943, nos ensina a perceber a política dos dias de hoje. Tal como em 1943, a austeridade e a obsessão orçamental são mecanismos disciplinadores das classes trabalhadoras. O emprego e a melhoria das condições de vida não são, como nunca antes foram, o seu verdadeiro objectivo.

O artigo, "The political aspects of full employment", e está disponível online.



[1] Uma das consequências da pobreza e do desemprego é precisamente a compressão dos salários. 

4 comentários:

  1. O que parece estar em causa é uma lógica de dominação/apropriação do outro, é preversa esta vontade. O capitalismo está assente na economia da privação, os países ricos sempre exportaram o desemprego. Nesta economia global apenas há espaço para o cinismo e para a desumanidade. Os ganhos de produtividade das sociedades têm sido apropriados em nome de um interesse comum que ninguem consegue identificar. E o mais gritante é mesmo a "banalidade do mal", a simpatia que as pessoas conseguem ter por este estado de coisas.

    ResponderEliminar
  2. O capitalismo selvagem chegou ao auge da monstruosidade. É impossível que o sistema não colapse e vai muito rapidamente colapsar, porque os povos vão começar a desobedecer e aprender a defender-se... e depois quem cria riqueza ???? - A especulação financeira satânica dos mercados bolsistas????

    ResponderEliminar
  3. Pode parecer impossível, mas Portugal dos dias de hoje está mais perto do período da Guerra do Vietname do que do Pós- 2ª Guerra Mundial. Não é a gozar, é a realidade de quem fica sem os seus próprios bens e, tal como aconteceu com os vietnamitas, para combater a desgraça capitalista, tem de recorrer a varapaus e sabe-se lá mais o quê!!!

    ResponderEliminar