18 abril 2014

Wadjda: quando uma bicicleta é o mundo


O Sonho de Wadjda (2012) conta-nos a história de uma miúda que desafia o conservadorismo e o machismo da sociedade saudita, usando ténis, tendo como melhor amigo um rapaz e desejando uma bicicleta. Uma personagem improvável? Um filme rodado inteiramente em território saudita e realizado por uma mulher também deveria ser impossível. Mas «a Arábia Saudita está a mudar», diz Haifaa al Mansour. Pois que mude, radicalmente.



Wadjda, a rapariga que dá nome ao filme, é uma adolescente que vive os seus últimos anos de liberdade. Em breve, por ser mulher, não poderá andar na rua com a cabeça descoberta, nem falar em público com o seu melhor amigo, Abdullah. Mas Wadjda não se encaixa na sociedade onde nasceu. Há nela uma inocente lucidez, não muito consciente, e isso fá-la desejar o mundo. Ter uma bicicleta é condição fundamental para poder fazer uma corrida com o seu amigo. Porém, é também o pretexto para metaforicamente reclamar o direito ao espaço público, pois «as bicicletas não são coisas de rapariga». Aquela bicicleta verde e luminosa permitir-lhe-á agir como o ser singular que é, para lá das determinações do ser mulher ou do ser homem. E Wadjda tudo fará para a conseguir, nem que tenha participar num concurso de recitação do Corão para ganhar o dinheiro necessário. Isso bastará?

Neste filme de Haifaa al Mansour, a primeira realizadora mulher da Arábia Saudita, acompanhamos também a história da mãe de Wadjda que enfrenta todos os dias as restrições impostas pela sociedade saudita: a simples liberdade de movimento é uma batalha diária que inclui desgastantes negociações com o motorista que a transporta para o trabalho; o drama de não conseguir ter o filho-homem que o marido, a família do marido e a própria sociedade exigem, configura o sentido da sua vida também todos os dias.

O Sonho de Wadjda fala-nos da condição das mulheres sauditas, deixando claro que em causa está uma moral patriarcal que a todos/as obriga e, por isso, é um filme enredado na figura do proibido e consequentemente, envolto nas fronteiras do possível. Quando Wadjda e Abdullah se encontram na rua para brincar, cada uma destas crianças está já a experimentar um impossível, contrariando o que se espera delas enquanto futuro homem ou futura mulher. E fazem-no sob o signo da amizade.

Como foi possível fazer um filme como este na Arábia Saudita? «Também fiquei surpreendida por o ter conseguido fazer», confessou Haifaa al Mansour ao Ípsilon (21-03-2014), numa conversa telefónica com Alexandra Prado Coelho. «Mas a Arábia Saudita está a atravessar grandes mudanças, há muita coisa a acontecer sob a superfície, e há neste momento uma maior abertura em relação aos direitos das mulheres e à arte». Contudo, a realizadora contou que teve de filmar as cenas de exterior dirigindo os actores, as actrizes e as câmaras escondida numa carrinha e socorrendo-se de um walkie-talkie.

O poder do cinema é a força deste filme. Através de um registo ficcional, acedemos a um vislumbre documental e crítico de uma sociedade, cujos traços de exotismo grotesco surgem no embate irredutível com as nossas convicções mais profundas sobre a liberdade e a igualdade. É que a opressão das mulheres é-nos apresentada sobretudo pela perspectiva das meninas, cuja infância e adolescência são vividas já nas margens apertadas da submissão e do controlo absoluto.

A escola pública é extremamente restritiva e nem sempre é compensada quando as famílias são relativamente liberais: as professoras são guardiãs da moral que as oprime e advertem as alunas para que usem o véu, ralham-lhes por falarem alto, pois «a voz de uma mulher é a sua nudez», e escondem-nas dentro das paredes da escola sempre que a partir dos muros do recreio possam ser vistas por homens. No filme, e novamente no contexto da escola, vemos raparigas de onze anos mostrando as fotos do casamento com um homem de vinte, outras são ameaçadas de expulsão quando são apanhadas a pintar as unhas dos pés e tentam esconder o que estavam a fazer, acabando sob suspeita de terem uma relação de cariz sexual e outras ainda são advertidas de que não devem tocar no livro do Corão com as suas mãos, caso estejam menstruadas.

Mas muita coisa tem vindo a mudar na Arábia Saudita, tal é o que compreendemos nas declarações de Haifaa al Mansour ao Ípsilon, na mesma entrevista já citada: «Hoje, uma mulher que queira trabalhar tem mais alternativas. Há mais incentivos para trabalharem em centros comerciais, por exemplo. Mas continua a haver resistência dos conservadores, que as pressionam para que tenham medo e não vão. É importante desafiar esses preconceitos. E isso já está a acontecer, há muitas raparigas que querem apenas ter uma vida normal e estão dispostas a enfrentar essas pressões. As mulheres já não se assustam tão facilmente».

«Não somos nós contra o mundo», diz Haifaa, «somos nós a tornarmo-nos também parte do mundo». É isso que significa a bicicleta de Wadjda.

O Sonho de Wadjda não foi exibido no reino, porque não existem salas de cinema, mas foi visto em várias sessões privadas e por muitos sauditas nos países vizinhos. Foi aplaudido em festivais por todo o mundo e chegou a ser seleccionado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, não tendo sido depois nomeado. Está ainda em exibição em Lisboa, no Cinema City Alvalade.

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