05 maio 2014

25 de Abril sempre – se há praias em nós, ondas virão

Foto de Eduardo Gageiro, 1º de Maio de 1974

«Oh meu amor! Temos connosco a praia da violência de alma. E, se há praias em nós, ondas virão.» Escreveu Jorge de Sena em «Conquista», Poesia I. Tanto é assim, ou assim foi, que estamos aqui hoje a comemorar os 40 anos de Abril, envoltos na saudação da revolução, esse impossível desmentido, e na recuperação da sua herança. É uma honra poder hoje dirigir-vos umas palavras, e faço-o modestamente e na qualidade de alguém que pertence à geração da encruzilhada: não vivi em ditadura, nem pude experienciar a manhã da liberdade e os dias quentes que se seguiram. Mas cresci ainda usufruindo não só desse bem maior que Abril nos trouxe, a democracia, como também do Estado Social, da escola e da saúde públicas. Hoje, tudo isso está em risco e a dívidadura cala-nos a esperança. Resta-nos reclamar de volta aquilo que não conquistámos, mas temos o direito e o dever de preservar e aprofundar. Entre o passado e o futuro, não podemos perder a oportunidade do presente.

E porque falar do tempo e de revolução implica sempre ou quase sempre - memória, convém sublinhar que nem o saudosismo ou a mera proclamação nos salvarão. Precisamos de um sentido coletivo, onde pluralidade e comum se conjuguem para permitir (de novo) um agir prodigioso, tal como o que o processo revolucionário de 74 fez nascer. Cuidemos então de garantir a imperecibilidade das mais fúteis atividades humanas – a ação e o discurso – e dos menos tangíveis e mais efémeros produtos humanos – os feitos e as histórias que deles resultam. É por isso que tem sentido comemorar os 40 anos do 25 Abril entre recordações, evocações e reflexão. Porque precisamos de compreender e lembrar tudo: Abril, sim, mas também o Estado Novo, os processos e os seus protagonistas, as continuidades e as descontinuidades, as decisões e as suas consequências, a coragem e a cobardia, os comícios, as assembleias, as ocupações e as manifestações, a repressão, as palavras e o silêncio, as esperanças e os medos, tudo. É preciso recuperar tudo isto, como um pescador de pérolas que desce ao fundo do mar, não para o escavar e fazê-lo aparecer mas para extrair das profundezas o rico e o estranho, as pérolas e o coral, trazendo-as à superfície, num pensar que mergulha nas profundezas do passado – mas não para o ressuscitar, tal como era e assim contribuir para o renascimento de eras extintas, mas sim para iluminar o presente. Assim recomendou Walter Benjamin. Pois o passado não é como o herói homérico a quem a memória deveria em hipérbole outorgar glória e fama. Ao passado, a memória só pode outorgar o dever da crítica, porque só assim os ritornelos da história poderão ser emancipadores.

Tentando satisfazer esse desejo de saber como foi, na passada sexta-feira, na noite deste 25 de Abril, assisti a uma projeção do documentário «As Armas e o Povo» na Cinemateca. E, neste precioso registo dos primeiros dias da Revolução dos Cravos, vi ruas transbordantes e pessoas felizes. Porém, também encontrei algumas semelhanças terríficas entre esse passado e o nosso presente. Naquela que foi a primeira expressão pública coletiva após o 25 de Abril, a célebre manifestação do 1.º de Maio de 1974, discursaram, no final, Mário Soares, Álvaro Cunhal e também dois sindicalistas. Jerónimo Franco, do sindicato dos metalúrgicos, arrancou aplausos e emoção a quem o ouvia, falando assim: «que raio de governo era aquele… que só nos dava o exílio, a emigração, a miséria, o bairro da lata, a espelunca, a fome, a peste e o trabalho escravo? que raio de governo era aquele… que tratava os trabalhadores como se trata um boi, querendo dele apenas a força de trabalho? e que apoio tinham e têm os operários reformados – apenas o sol, o ar, a água da fonte e o banco de jardim; éramos prisioneiros na nossa terra, libertemo-nos agora».

As palavras deste sindicalista ecoam duramente na realidade das nossas vidas: «que raio de governo é este… que só nos dá o exílio, a emigração, a miséria, a fome e o trabalho escravo? que raio de governo é este… que trata os trabalhadores como matéria descartável pronta a deitar fora e a despedir, querendo deles apenas a força de trabalho? e que apoio tinham e têm os reformados e pensionistas – apenas o sol, o ar, a água da fonte e o banco de jardim, porque pouco mais lhes falta roubar; somos prisioneiros na nossa terra, libertemo-nos agora do jugo dos mercados, da troika e do fanatismo da austeridade. 

Muitas faixas se erguiam naquela manifestação que parecia não ter fim. Numa delas lia-se «estudantes, futuros proletários». E de novo o calafrio do revés da história – agora podemos ler nas pancartas que saem à rua em dias de protesto: «estudantes, futuros precários».

Hoje, a poeira da política da austeridade entranha-se nas vidas difíceis como uma tempestade de areia que vem transformar o território da maioria das pessoas, alisando-o, tornando-o monótono, árido, sem vida. A elite é protegida num suposto oásis, paraíso dos intocáveis, inimputáveis de responsabilidades e sacrifícios. Assim, para a maioria das pessoas, e assim lhes é dito, tudo o que vai além da sobrevivência é um luxo, um apetite burguês, acessório, não importante. Por isso, limitada pelos salários à conta ou insuficientes, pela vida centrada no ganha-pão, pelo tempo livre que apenas pede alienação, pela chantagem do desemprego ou da discriminação, a maioria das pessoas soma um dia ao outro sem chegar a um resultado final. Desejam que a semana acabe para começar logo outra, acumulando tempo vazio, um tempo cheio de nadas. Esta é mais uma consequência da austeridade: não são só as barrigas vazias… são também as almas penadas. A troika e este Governo trouxeram-nos a recessão e a pobreza, mais exploração e menos salário. Este é o primeiro plano do horizonte programado. Num segundo plano paralelo, encontramos a engrenagem da automatização das vidas e um país cego de cultura e humanidade. O saque reflete-se no corpo material que trabalha, mas também na vida imaterial sem a qual não se pode «viver». É a educação, a cultura, os afetos, as expetativas, os sonhos, a memória. Por isso, hoje reclamamos «as nossas vidas», e isso é reclamar tudo, incluindo Abril – para que sobreviver não seja apenas acumular um dia após o outro, como uma vitória amarga. Porque não há dignidade na miséria, não. E também não há honra quando se desiste perante uma fatalidade que sabemos inventada para caçar recursos e almas submissas.

Sou bolseira de doutoramento em Filosofia pela FCT no CFUL e, por isso, não posso deixar de referir os tempos sombrios que se vivem no seio da investigação científica. Na transição para o novo ano, este sector que já apresentava sinais de debilidade de origem austeritária, bem como de precariedade crescente, foi derradeiramente incluído no plano neoliberal do Governo PSD-CDS. Ficámos às escuras, sem possibilidade de presente e com o futuro hipotecado. Porém, a penumbra das sombras convoca-nos a agir.

Perante os acentuados cortes no financiamento da investigação científica, que são gerais mas também direcionados para um desinvestimento claro na chamada ciência fundamental, onde se enquadram as ciências sociais e as humanidades, pois trata-se de concentrar os apoios «onde eles são cientificamente mais rentáveis», segundo o nosso ignóbil Primeiro-ministro; perante o beco sem saída da máxima precariedade como regra, orientação que já vem de tempos anteriores e cujo corolário é o paradigma da bolsa que não reconhece direitos laborais nem proteção social à maioria dos/as investigadores/as; perante os dramáticos resultados dos últimos concursos de bolsas e investigador FCT que se traduzem numa verdadeira hecatombe social e científica agravada pela assombração de irregularidades e pouca transparência (milhares de investigadores ficaram no desemprego e a produção científica encontra-se ameaçada, qualitativa e quantitativamente); e também perante a consequente abertura no espaço público para a discussão sobre estes problemas e sobre o próprio valor do saber científico, nem sempre quantificável em mercadoria, tecnologia ou moeda de troca, a academia encontra-se em convulsão e impelida para a ação. Estamos em guerra, foi/é preciso ocupar o terreno da batalha. 

No recém-divulgado relatório do inquérito dirigido a todas as pessoas que trabalham em investigação científica, realizado pelos Precários Inflexíveis, as conclusões são pontos de luz que desmascaram esta realidade inaceitável: «a grande maioria dos investigadores são eternos bolseiros, dificilmente têm acesso a um contrato de trabalho e, perante a sua condição precária, pretendem emigrar». O espaço público da imprensa tem sido ocupado, quase diariamente, por artigos de investigadores de carreira que não desistem, nem sucumbem perante a propaganda do Ministro da Educação e Ciência ou as tristes alegorias empresariais do Ministro da Economia. Em Janeiro, bolseiros/as e investigadores/as saíram à rua em manifestação e eram tantos como nunca se viu ou imaginou ver. Isto e as cartas abertas, os laboratórios desobedientes que divulgam comunicados de órgãos do Governo que ousam ser democráticos e alertam para a grave situação da investigação científica portuguesa e também todas as reuniões de bolseiros/as, investigadores/as e docentes que se estão a multiplicar por várias faculdades e universidades dão-nos um sinal daquilo que é a verdadeira excelência da ciência, que está muito aquém da superficialidade dos índices de produção ou da vertigem da mercantilização. Tal como quando está em jogo a sua atividade essencial que implica autonomia e poder criador, a ciência, agora numa guerra política pela sua sobrevivência e dignidade, coloca em prática a sua maior virtude: a coragem.

Por falar em coragem, umas últimas e breves palavras para reclamar o espírito de Abril, sob a égide inspiradora da pensadora política que ocupa um lugar central no meu trabalho de investigação: Hannah Arendt.

Para combater o deserto, é o próprio mundo, enquanto artifício humano, que tem de ser transformado e essa é a resposta política, em todos os seus sentidos, defende Hannah Arendt. E, assim, propõe-nos pensar a política enquanto o desejo da revelação involuntária, a ventura da ação entre pares e do começar algo (de) novo. É nos momentos revolucionários que acedemos a essa experiência autêntica da política. Agir é, portanto, «correr o risco da vida pública». Como afirmou Arendt num texto dedicado a Karl Jaspers, «a humanitas nunca se adquire na solidão, nem na entrega da obra ao público. Só a podem alcançar aqueles que empenharam a sua vida e a sua pessoa na “incursão no domínio público”». A coragem é, portanto, a primeira virtude política, tanto num sentido aristotélico e aqui também homérico. Por conseguinte, a proposta implícita nestas palavras é a da restauração do espaço público como um mundo comum alimentado pelo agir e falar em conjunto, conjugando pluralidade e dissenso, imaginação e compromisso coletivo. Nesse intervalo espreitará a liberdade. Bem o vimos acontecer por aqui, no tempo dos cravos vermelhos.

É assim que imagino o 25 de Abril que não vivi e é assim que experiencio hoje a resposta aos duros desafios que enfrentamos. Afinal, e voltando ao início, se há praias em nós, ondas virão.

(Esta foi a intervenção que realizei no Jantar Comemorativo dos 40 Anos de Abril, que teve lugar no passado dia 30 de Abril, na Cantina Velha da Cidade Universitária, em Lisboa)

1 comentário:

  1. «Hoje, tudo isso está em risco e a dívidadura cala-nos a esperança. Resta-nos reclamar de volta aquilo que não conquistámos»


    Mas para reclamar não bastam manifestações, cartazes, palavras de ordem, discursos e canções de protesto.

    Ouve-se muitas vezes dizer que "a violência gera violência", que "a violência nunca consegue nada", ou que "se se usar a violência para nos defendermos daqueles que nos agridem, ficamos ao nível deles". Todas estas afirmações baseiam-se na noção errada de que toda a violência é igual. A violência pode funcionar tanto para subjugar como para libertar:


    * Um pai que pegue num taco para dispersar à paulada um grupo de rufias que está a espancar o seu filho, está a utilizar a violência de uma forma justa;

    * Uma mulher que crave uma lima de unhas na barriga de um energúmeno que a está a tentar violar, está a utilizar a violência de uma forma justa;

    * Um homem que abate a tiro um assassino que lhe entrou em casa e lhe degolou a mulher, está a utilizar a violência de uma forma justa;

    * Um polícia que dispara contra um homicida prestes a abater um pacato cidadão, está a utilizar a violência de uma forma justa;

    * Os habitantes de um bairro nova-iorquino que se juntam para aniquilar um bando mafioso (que nunca é apanhado porque tem no bolso os políticos, os juízes e os polícias locais), estão a utilizar a violência de uma forma justa;

    * Um povo que usa a força dos músculos e das armas (já que sonegado de todas as entidades que que o deveriam defender), contra a Máfia do Dinheiro acolitada por políticos corruptos, legisladores venais e comentadores a soldo, cujos roubos financeiros descomunais destroem famílias, empresas e a economia de um país inteiro, esse povo está a utilizar a violência de uma forma justa.

    Num país em que os políticos, legisladores e comentadores mediáticos estão na sua esmagadora maioria a soldo do Grande Dinheiro, só existe uma solução para resolver a «Crise»... Somos 10 milhões contra algumas centenas de sanguessugas...

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