06 maio 2014

Guiné Equatorial: as razões que Martins da Cruz não encontra


A entrada da Guiné Equatorial na CPLP tem gerado um interessante debate. A novidade é a entrada na discussão de António Martins da Cruz. Recorde-se os mais esquecidos que, depois de ter sido assessor diplomático de Cavaco Silva, Martins da Cruz foi ministro de Durão Barroso – cargo do qual não se pode dizer que tenha tido uma saída limpa.

Diz Martins da Cruz que não encontra “razões para que a Guiné Equatorial não seja aceite na CPLP”. A afirmação não provoca surpresa, acompanhando as declarações servis de Luís Amado e Rui Machete. Os argumentos alternam entre a negação da realidade e a admissão, essa sincera, de que as relações políticas entre Estados não devem ser submetidas ao critério da democracia. Em todo o caso, valerá a pena referir o que tenta esconder o trio Cruz-Amado-Machete sobre a ditadura de Teodoro Obiang.

A primeira ideia avançada por Martins da Cruz – à semelhança do que haviam dito Luís Amado e Rui Machete – é a de que a Guiné Equatorial regista uma evolução no que diz respeito aos direitos humanos. Diz o ex-ministro sobre a pena de morte: “a Guiné Equatorial declarou uma moratória, ou seja, embora não a tenha abolido, comprometeu-se a não a utilizar”. Trata-se da imagem perfeita da falácia científica: inventam-se os factos (a moratória) para comprovar a teoria (os progressos do regime). Acontece que, em rigor, a referida moratória não existe. A referência à abolição da pena de morte, incluída na resolução presidencial nº 426/2014, tem apenas um carácter temporário e não tem qualquer perspetiva de inclusão no quadro legal do país. Não tendo sido submetida a qualquer debate parlamentar, nem tão-pouco a consulta referendária, aplicar-se-á apenas às condenações já efetuadas.

Prova da artificialidade da medida é o facto de o discurso oficial contrariar a prática seguida no país nos últimos meses: em Fevereiro deste ano, Ana Lúcia Sá denunciou a “execução sumária sem direito a uma apelação” de nove ativistas políticos. Esta denúncia foi prontamente confirmada pela Amnistia Internacional, que refere que “os presos foram informados das suas iminentes execuções apenas 30 minutos antes de as mesmas acontecerem”. O compromisso com a abolição da pena de morte não tem outro valor que não o da palavra de Teodoro Obiang. Ou seja, não tem valor algum.

As sucessivas violações dos direitos humanos devem ser vistas à luz da realidade social e política do país. Teodoro Obiang lidera o país desde 1979. Não é que o facto impressione Martins da Cruz, que, numa entrevista recente, teceu simpáticos elogios a José Eduardo dos Santos. A longevidade do regime é a imagem da sua elite dirigente: a acumulação da família Obiang contrasta com a miséria de um país em que a esperança média de vida à nascença é de 51 anos. Os dados do Fundo Monetário Internacional (2011) referem que a Guiné Equatorial tem o 45º PIB nominal per capita mais elevado do mundo. Contudo, o relatório anual da Human Righs Watch refere que o país “tem de longe a maior diferente de todos os países entre o seu produto per capita e o seu nível de desenvolvimento humano”.

O Índice de Percepção sobre a Corrupção de 2013, da Transparência Internacional, coloca a Guiné Equatorial no 163º lugar no ranking dos 177 países mais corruptos do mundo. O próprio filho do presidente, Teodorin Obiang, indicado como o seu provável sucessor, tem um mandato de captura válido em Portugal e, em 2011, os tribunais norte-americanos decretaram a apreensão dos bens de luxo adquiridos (num valor superior a 70 milhões de euros).

Cada um destes dados, ainda que ignorado pelos defensores do regime, é uma machadada no espírito dos documentos fundacionais da CPLP. Os princípios orientadores da organização assumem “o primado da paz, da democracia, do estado de direito, dos direitos humanos e da justiça social” (artigo 5º dos Estatutos da CPLP). Martins da Cruz, que certamente conhece como poucos estes documentos, esqueceu-se de referir que estes princípios devem ser interpretados como critérios excludentes da entrada de novos membros. É pena.

Sem argumentos que sustentem a evolução positiva do país, restaria ao trio Cruz-Amado-Machete o argumento da língua portuguesa. É ponto assente, e por ninguém desmentido, que a língua portuguesa não é falada na Guiné Equatorial. E, ao contrário do que refere Martins da Cruz, “o problema da língua portuguesa” não ficou resolvido “com a visita, há uns meses, do Secretário de Estado da Cooperação”. Não deixa, aliás, de ser estranho que o ex-ministro refira que nesta visita “se deu o pontapé de saída para que o português começasse a ser estudado ao nível liceal e universitário”. É que já o segundo governo de José Sócrates se tinha predisposto a assinar protocolos de cooperação para o ensino do português no país. Sinal das contradições do discurso, esta afirmação deixa a dúvida: esses programas nunca saíram do papel ou tratava-se apenas de uma estratégia para legitimar a proposta de entrada na CPLP? Talvez Luís Amado, à época ministro da tutela, lhe possa soprar a resposta.

Por último, Martins da Cruz tenta ainda argumentar que o território “já foi uma colónia portuguesa”. O facto, que por si não justifica coisa alguma, é igualmente absurdo: a presença portuguesa na Guiné Equatorial circunscreveu-se fundamentalmente às ilhas de Fernando Pó e Ano Bom (e, como o próprio reconhece, terminou com o Tratado de Madrid, em 1753). Assim, fica apenas uma vaga referência à lusofonia como marca de um sentimento pós-colonial mal disfarçado – sentimento esse que Miguel Vale de Almeida em boa hora classificou como “complexo colonial português”.

Se é certo que a Guiné Equatorial não respeita os direitos humanos e não é um país de língua portuguesa, o que move, afinal, os defensores da sua entrada na CPLP? Serão várias as motivações, dependendo dos interesses nos recursos de um dos maiores produtores de petróleo e gás do continente africano. O Jorge Costa, num artigo publicado neste espaço, refere a relação entre o capital guinéu-equatoriano e o BANIF. Soube-se entretanto que Luís Amado, que passou de ministro para chairman deste banco, foi convidado para ser vice-presidente da Cimeira de Díli – na qual será decidida a entrada da Guiné Equatorial da CPLP. Certo é que, no caso destes três responsáveis políticos, que passaram pelos vários governos, a expressão “negócios estrangeiros” está longe de estar desadequada.

3 comentários:

  1. Gosto muito jfmmeireles@sapo.pt

    ResponderEliminar
  2. Apesar de reconhecer que esta “anexação” da Guiné tem intenções puramente financeiras, acho que pode ser uma excelente oportunidade para que a democracia se instale no país. Se for esse o interesse da CPLP, claro. É preciso é mudar os objectivos.
    Acho que o discurso político não se devia centrar na “anti-anexação” mas sim em pressionar o regime da Guiné para a erradicação da desigualdade, da exploração, da tortura, da pobreza. O facto de um estado sanguinário como o da Guiné equatorial entrar na CPLP, composto por países onde os direitos humanos são substancialmente mais defendidos e valorizados que na Guiné, pode servir de rampa de lançamento à democratização e pacificação do país. Conhecendo os protagonistas desta promoção da Guiné Equatorial a país lusófono,é óbvio que não é de todo essa a intenção primordial, embora seja isso que demagogicamente anunciam.
    A melhor forma da população daquele país continuar a viver em condições deploráveis de liberdade e em pobreza, é continuar isolado do mundo. Quanto mais próximos estiverem de países livres, mais rapidamente serão livres para serem livres.
    Que se faça um política de denuncia e de combate em prol da liberdade do povo da Guiné Equatorial, tendo como exemplo os países da CPLP, em especial, Timor.

    ResponderEliminar
  3. Rui,
    está por provar que a CPLP tenha feito bem à democracia de quem quer que seja. Não me parece que José Eduardo dos Santos seja um grande professor de democracia para Teodoro Obiang. A Guiné Equatorial é membro de pleno direito da Organização Internacional da Francofonia e isso não lhe resolveu nenhum problema. Aliás, a CPLP tem hoje um papel quase exclusivamente económico. A questão é a de saber se queremos abrir as portas à GE a esse espaço ou não. Sobre as funções da CPLP, sugiro-te o artigo do Miguel Vale de Almeida linkado acima, que, tendo já alguns anos, continua a colocar questões interessantes.

    ResponderEliminar