18 julho 2014

A justiça tem pressa

Já sabemos há muito tempo que estamos em lados opostos. E sabemos que, do outro lado, se defende um caminho que leva à pauperização de tantos para o enriquecimento de tão poucos. Sabemos que nos têm mostrado quantos pobres são precisos para se fazer um rico, respondendo agora à pergunta que Garrett fez há tanto tempo. Mas há alturas em que a dualidade e o maniqueísmo não são vistos de acordo com um filtro ideológico, mas de acordo com birras, indecência e, naturalmente, falta de vergonha na cara.

Refiro-me a uma notícia publicada no i, que, por sua vez, se refere a um projecto de lei do Bloco de Esquerda que foi chumbado em comissão. O projecto do Bloco propõe que seja o não consentimento a definição central do crime de violação, e não a prática do acto sexual por meio de violência. Assim, é “no 'não consentimento' que se configura o atentado à autodeterminação e liberdade sexual, e as demais formas de violência só podem ser entendidas como agravantes". O projecto avança ainda para a qualificação da violação como crime público.
As reacções de outros grupos parlamentares fizeram-se ouvir e não deixaram de chocar (e revoltar). Teresa Anjinho, do CDS, diz que "Houve insistência de todos os partidos de que ainda não estavam reunidas as condições para votar". Anjinho permite, assim, que um crime diabólico continue a ocorrer com a conivência do Código Penal, tão brandinho para quem viola. Mulheres continuam a ser violadas,  homens continuam a safar-se por uma lei cega a tanta coisa (veja-se este artigo da Mariana Mortágua). A ocorrência de violações seria, à partida, a condição para que esta votação fosse feita e para que este projecto fosse aprovado. Mas Teresa Anjinho achou que não. Vergonha. Que lhe pesem as vítimas. Havia quem defendesse que fossem defendidas.

A saga continua. Carla Rodrigues, do PSD, diz que “O BE forçou o agendamento, votámos contra não pelo conteúdo dos projectos, mas pela atitude reprovável”. Portanto, o conteúdo do projecto não importa, para a deputada do PSD, rigorosamente nada. Não importa que, com este resultado da votação, a lei permita que mulheres continuem a ser violadas desde que o violador tenha ternura. Não importa que mulheres e homens do nosso Parlamento sejam, votando assim, cúmplices deste crime. Nada disto importa. Importa que Carla Rodrigues tenha achado que o Bloco forçou a votação (como se ela não pecasse já por tardia!). Deveria prevalecer um sentido de justiça perante as dezenas de violações que ocorrem por aí. Mas Carla Rodrigues achou que não, achou que o Bloco estava a ser irritante e que não lhe apetecia votar naquele dia. Vergonha. Que lhe pesem as vítimas. Havia quem defendesse que fossem defendidas.

A saga continua. José Magalhães, do PS, diz que o Bloco fez “uma birra metodológica”, já que “insistiu em pedir a votação quando tínhamos audições à tarde [no grupo de trabalho]”. O deputado do PS diz que continua “sem perceber o porquê do ataque agudo de urgência que deu ao BE naquela manhã". Não precisamos de ser lexicógrafos para vermos que, aqui, a birra parte da bancada do PS e não da do BE, já que é o PS que não vota favoravelmente um projecto destes e não o faz por discordar do conteúdo, mas por não gostar dos proponentes. Mas José Magalhães vai mais longe na sua falta de noção da gravidade das coisas, na sua conivência com a perpetuação do estado de coisas: o deputado do PS não percebe “o porquê do ataque agudo de urgência que deu ao BE naquela manhã”(!). Falamos de crimes que ocorrem no dia-a-dia das mulheres portuguesas, que, por conivências legais (veja-se mais uma), têm dificuldade em ser defendidas. Há uns dias, referi-me ainda a uma notícia que, na prática, condenava a vítima por não saber os nomes legais dos crimes. Estou certa de que, se uma filha, irmã, esposa ou mãe de José Magalhães estivesse no lugar de uma vítima, ele iria ter a sensatez de perceber que há uma urgência enorme em legislar de forma a que as violações não sejam assim tão facilmente perdoáveis e as vítimas não sejam assim tão facilmente condenáveis. Há uma urgência enorme em mudar esta lei, porque o mundo não pára, as injustiças continuam e a justiça tem pressa. Mas José Magalhães achou que não. Vergonha. Que lhe pesem as vítimas. Havia quem defendesse que fossem defendidas.

Que não nos passe ao lado nunca, que a memória não vacile: esta gente votou contra as vítimas, porque prevaleceu não o sentido de justiça, mas o medo obtuso de dar crédito político ao Bloco. Votaram contra todas as vítimas de violação, contra todas as vítimas de agressão sexual. Deixaram que este horror continuasse. A história repete-se, é verdade, e é verdade que já houve um tipo que lavou as mãos perante o horror. Acho que se chamava Pilatos ou qualquer coisa assim. Foi há muitos anos e ainda hoje há quem diga mal dele.

Sem comentários:

Enviar um comentário