06 julho 2014

BES: o império dos homens maus



Numa entrevista ao canal da Bloomberg, o aparelho fonador da finança global, José Maria Ricciardi referia a transparência institucional e financeira como uma vantagem e uma diferença marcante entre as economias portuguesa e grega. Corria o ano da graça de 2012. O então presidente executivo do BES Investimento e homem forte da supervisão da EDP seria eleito, no ano seguinte, um dos banqueiros do ano pela revista World Finance. Esta história de encantar acabou com a divisão no seio da família Espírito Santo, lançada agora no segundo e mais brando exílio da sua longa dinastia. A importância deste caso reside, em parte, no poder político que o império Espírito Santo construiu ao longo de mais de um século. De seguida propomo-nos a levantar um pouco do véu.

Governa quem tem votos, governa quem manda

A relação do BES com o poder político durante o século XX foi intensa e estruturante, por isso mereceu ser estuda em pormenor e o resultado está à nossa disposição[i]. Vale juntar a essa cartografia da força económica, as expressões políticas pela quais se manifestou nos diversos governos. A cooptação de dirigentes capazes de se moverem entre a política e os negócios, com a subtileza e hibridez necessárias, é a primeira evidência da grande mecânica. Basta, para tal, constatar que o grupo BES esteve presente, através de governantes que transitaram dos seus quadros para o governo ou que aí aportaram depois da passagem pelo executivo, em 16 dos 19 governos Constitucionais[ii]. É preciso recuar ao breve governo de Maria de Lourdes Pintassilgo para encontrar um executivo cujos membros não estabeleceram, em algum momento, um vínculo com o BES.


São variáveis as formas como o maior banco privado português construiu a sua rede de influência entre os governantes, como diferentes são os sinais de retribuição de cada um dos 25 Ministros e Secretários de Estado que se cruzaram com os destinos do BES. Encontramos percursos de relevo pelo papel desempenhado em momentos chave da economia portuguesa, como é caso de Ernâni Lopes, Ministro das Finanças do Governo do Bloco Central (1983-1985), responsável pela chamada Lei de Delimitação de sectores, aprovada em 1983, que pela primeira vez desde as nacionalizações abria o sector da banca à iniciativa privada, preparando assim a primeira fase de privatizações. A criação do Banco Comercial Português, em 1984, com capitais coordenados por Américo Amorim, teve o apoio deste economista e quadro do Banco de Portugal. O BES foi, posteriormente, o único banco privado no qual Ernâni Lopes desempenhou funções de administração (2002-2003).

Na fase seguinte, os governos de Cavaco Silva são marcantes para a recomposição do grupo, abrindo os campos legais à privatização (criação das sociedades anónimas de capitais públicos e nova revisão constitucional), e gerindo estrategicamente a entrega das seguradoras como primeira etapa de recomposição do poder financeiro. A privatização da Tranquilidade, com o apoio do Crédit Agricole e o apadrinhamento político de Mário Soares, foi fundamental para o regresso da família Espírito Santo e o fortalecimento financeiro indispensável no ataque à privatização do BES.

É um período no qual Miguel Horta e Costa ocupa o cargo de Secretário de Estado do Comércio Exterior (1987-1990), decisivo nas novas relações com a banca europeia, para logo depois ingressar na presidência do BES Investimento (1990-1995). Um acontecimento não inédito na família, uma vez que o seu tio, Miguel Jorge Horta e Costa, o quinto Barão de Santa Comba Dão, era muito próximo de Manuel Ricardo Espírito Santo, do qual recebeu a administração da Mocar e Santomar. Nesta fase ingressam ainda no banco ex-governantes como Rui Machete (1990-1991), Emílio Vilar (1985-1986) e Almerindo Marques (1985). Este último viria a reencontrar o BES já na qualidade de presidente das Estradas de Portugal, tendo por função a supervisão do consórcio que o banco mantém com a Mota-Engil (Ascendi).

Um banco de todos os regimes, de vários partidos
Sucesso de propaganda do BES, a Dona Inércia representa os seus clientes, que na sua maioria esperam do banco as decisões e tarefas que não estão ao seu alcance. A personagem funciona porque é uma paródia benevolente das nossas fraquezas: desorganizada e preguiçosa, a dona Inércia tem o BES que lhe cuida da vida. A imagem de poder do BES, construída a partir do signo da força financeira e agilidade prática, projeta-se também na robustez institucional do banco, afirmada vezes sem conta ao público português. Não se pode afirmar que seja uma propaganda enganosa. O BES soube, de facto, acompanhar as mudanças de regime e as alternâncias da mudança política em Portugal.

Comprovamos essa adaptação com as privatizações dos sectores estratégicos lançadas por António Guterres, que conferiram ao BES um lugar de comando na banca nacional. A relação de credor com a PT passa a ser um dos pilares do grupo, com Murteira Nabo a saltar de Ministro de Guterres para a presidência da telefónica (1996-2003), integrando, quatro anos mais tarde, a administração do BES. No mesmo período, um ex-quadro do BES, António Mexia, chega ao comando da Galp, petrolífera onde o banco manteve uma posição até o ano 2000, alienando-a à ENI e Iberdrola por influência do inevitável Pina Moura.

O início do século marca a expansão do grupo BES a outras áreas de influência, como a saúde, cuja atividade pôde contar com a consultadoria da atual presidente do PS, Maria de Belém Roseira, assim como a consolidação do seu braço institucional, a Fundação Ricardo Espírito Santo, que coopta para a sua presidência a ex-Ministra da Cultura, Maria João Bustorff. Já no tempo de Sócrates, a influência do BES permanece, com os destinos da economia entregues ao seu quadro de longa data, Manuel Pinho, que agora acordou uma reforma milionária com o banco.

Os laços de influência e poder do BES são hoje mais visíveis, uma vez que a crise no grupo exige uma mobilização agressiva dos seus recursos políticos. As anunciadas nomeações de Vítor Bento e de João Moreira Rato para a condução do banco comprovam a tendência geral do sector: a burguesia financeira portuguesa perde espaço com a crise, o Estado é convocado e os quadros orgânicos do poder mobilizados. A fatura será entregue, é certo, não fosse este ainda um começo de uma outra história, onde os bons possam, porventura, tentar a sua vez.


[i] Os Donos de Portugal (2010), Afrontamento.
[ii] http://www.osburgueses.net/

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