25 julho 2014

Gaza e a neutralidade impossível

Apresento-me com brevidade. Escrevo sobre questões que me importam. Não costumo escrevinhar parvoíces panfletárias, não tenho paciência para partidologias e tendo a ser livresco, coisa que considero ser uma virtude. Sou historiador de ofício e estado de espírito. Fora isto, não tenho muito mais a declarar.

Começo por Gaza. Tal como diz José Manuel Fernandes, e bem, a "difícil questão de Israel e de Gaza"* é, demasiadas vezes, abordada de forma parcial e redutora. O problema é que, ao longo do espectro de posturas a respeito de um conflito bastante menos importante que outros, como os conflitos regionais no continente africano ou a situação do subcontinente indiano, tendemos a confundir posições parciais e redutoras com posições emanadas de pontos de partida ideológicos. No entanto, não há qualquer isomorfismo entre elas. Uma posição ideológica - isto é, baseada em convicções firmes e justificadas - não pode, é óbvio, ser imparcial. Mas pode evitar uma visão redutora. De facto, aquilo que me parece ser mais evidente, a respeito da "questão de Israel e Gaza" (uma formulação que não faz grande sentido, aliás), é isto: as posições ditas imparciais e não-redutoras, que procuram uma neutralidade grosseira, enfermam de um problema: impedem a procura e determinação de soluções. O texto de José Manuel Fernandes mostra-o bem: pode tentar atingir um ponto razoável de equilíbrio, assumindo que Israel tem direito a existir (e tem-no, na minha opinião) e que o Hamas não é igual à Fatah (não é, realmente), depende do apoio da Síria, da Turquia, de algumas facções egípicias e de algumas formações políticas do Golfo, além de arriscar vidas civis. Mas não consegue incorporar, no argumentário, a legitimidade da opressão económica à população de Gaza. E não consegue descortinar a responsabilidade de Israel na permanência do Hamas. Ou na perda de importância da Fatah na correlação de forças do governo do destino colectivo palestiniano.


A neutralidade é impossível. David Rothkopf, que nunca seria confundido com um perigoso esquerdista, disse-o, há alguns dias, na Foreign Policy:

The government may take every precaution, use the most advanced smart munitions available, and periodically stop its warring to offer humanitarian relief. But when innocent children die while playing on the beach, every justification rings hollow, every precaution is revealed to be callously inadequate (...) Arguments about self-defense ring hollow when the defenseless are murdered. Indeed, the notion that such actions could be "limited," which is to say managed or contained, is belied by the unintended consequences like those that have dominated the news this week.

Sim, é verdade que o Hamas atira rockets a partir de zonas civis. Mas Israel tem um dos sistemas científicos mais sofisticados e militarizados do mundo. Também é verdade que, de acordo com os pressupostos teóricos da doutrina da guerra justa, que domina a justificação liberal dos actos de guerra, Israel pode montar um caso relativamente sólido a favor de uma intervenção - os critérios jus ad bellum podem ser adequados e válidos, embora a sua justiça possa ser questionada. No entanto, Israel detém um sistema de barreiras anti-aéreas que impede a maioria dos projécteis atirados de atingir os alvos, civis ou militares.

A questão é outra. O desequilíbrio de forças não se esgota nas capacidades militares. Israel constitui, actualmente, um poder colonial e, como vários poderes coloniais ao longo dos dois séculos transactos, conta com a cooperação internacional, disfarçada de inércia diplomática ou apoio económico tácito, para prossecutar uma política de terror legítimo. Note-se, o meu reconhecimento de Israel enquanto entidade política com pretensões legítimas é devido, tão-somente, ao facto de ser impossível recuar a 1948 ou, até, a 1967. Isso já não é possível. É preferível reconhecer a necessidade imperiosa de dois estados, da desocupação dos territórios ocupados e do fim do estrangulamento económico exercido por Israel sobre o povo palestiniano. Mas podemos tirar outras ilações. Porque é que devemos reconhecer legitimidade a Israel e não à resistência armada dos palestinianos contra uma ocupação colonial? Porque é que devemos dizer, a bem da clareza, que não somos anti-semitas por criticar Israel? O espectro do caso Walt-Mearsheimer ainda está aí, já para não falar do caso de Hannah Arendt. A minha resposta a estas questões é simples: não se pode reconhecer o direito de Israel à soberania sem reconhecer o direito do povo palestiniano, que elegeu o Hamas como representante legítimo, a uma resistência armada. Se seria preferível uma solução negociada, pacífica e equilibrada? Sim, seria. Mas essa solução não pode ser perseguida sem que se cumpram, pelo menos, três condições necessárias: a retirada liminar do apoio internacional, tácito ou incondicional, a Israel e à facção militarizada do Hamas, a remoção das elites, em ambos os lados, a quem convém a manutenção de um estado de conflito latente (e a quem interessa pouco quantas "baixas civis" ocorrem), e a mobilização do povo israelita contra a loucura da extrema-direita sionista, aliada à mobilização do povo palestiniano contra as maquinações de poderes externos, geralmente autocracias dependentes do petrodólar, que fazem da causa palestiniana um estandarte cínico.

Não podemos, portanto, assumir uma neutralidade impassível. É preciso tomar partido. Quem defende a retórica militarista de gente como Avigdor Lieberman dá razão a este artigo de Amira Hass. Vale a pena citá-lo:

"Nation, army, government and press: You have eyes and ears, yet you will not see and you will not hear. You still hope that the Palestinian blood we have already shed and have yet to shed will win a long-term lull, which will bring us back to occupation as usual. You refuse to use your competence to stop in time, before an even bigger disaster takes place — just as you refused the time before, and the time before that."

É preciso acrescentar que, de acordo com o próprio Council on Foreign Relations, uma parcela muito significativa do orçamento do Hamas é dedicada a programas de apoio social. A questão, portanto, é saber por que razão o Movimento de Resistência Islâmica continua a ser dominado pelo seu braço armado. Talvez a resposta esteja no facto de se matar gente inocente, famílias inteiras, e de se criar um terreno inteiramente apropriado ao recrutamento de jovens para as milícias que mantém o conflito activo. Tal como acontece, de resto, com as forças armadas israelitas.

A manutenção deste conflito convém a muita gente poderosa de ambos os lados. Aaron David Miller di-lo com precisão:

The problem posed by Hamas is not just a piece of propaganda by the Israeli right. The fact is that the absence of a monopoly over the organized use of violence in the Palestinian territories poses a legitimate threat to a two-state solution. What Israeli is going to make what are regarded as existential concessions to Mahmoud Abbas -- a Palestinian leader who lacks the power to silence all the guns and rockets of Palestine?

Enquanto não se reconhecer isso, haverá quem fale, en passant, de baixas civis, de Israel como uma cambada de assanhados extremistas e do Hamas como o salvador da pátria. E os hospitais, em Gaza, continuarão a explodir; as crianças continuarão a ser trucidadas em praias; as escolas da UNRWA continuarão a ser atingidas. Ninguém viverá em paz enquanto Israel não encetar um processo de descolonização interna que culmine no reconhecimento da sua condição de poder imperial; e ninguém viverá em paz enquanto Gaza for a maior prisão a céu aberto do mundo, a Cisjordânia viver com um garrote económico e o povo palestiniano não veja o seu direito à auto-determinação reconhecido. Até lá, o direito desse povo à resistência armada é inalienável, tal como o do povo timorense ou qualquer outro sujeito político sob o jugo do colonialismo.

4 comentários:

  1. João Bárbara25 julho, 2014 12:07

    Estou de acordo básicamente com este artigo. No entanto, parece-me que a questão Israelo-Palestiniana, tem uma dimensão geo-estratégica regional e global que ultrapassa em muito a mera questão da segurança de Israel (na sua prespectiva) e da legitimidade da sua existência como nação. Refiro-me ao facto de, na minha opinião, Israel ser uma "ponta de lança" dos interesses americanos naquela região do Médio Oriente (follow the oil). E, depois, há haver aqui uma barbárie, uma crueldade - este morticínio das crianças, do qual o episódio na praia é apenas um exemplo -, que não parece ser apenas gratutita mas prosseguir um objectivo político preciso, que é o da radicalização (ainda mais extrema) das massas árabes.Radicalizar os árabes não é a melhor maneira de os poder diabolizar a seguir? Por outro lado, não sendo grande partidário de conspirações, parece-me que este aspecto não é alheio aos acontecimentos de total desestabilização dos regimes árabes laicos (regimes pouco recomendáveis, mas ainda assim piores dos que vieram a seguir?). Dividir para reinar, não é? Veja-se, por exemplo, o que se passa no Iraque onde o ISIS acaba de impor a mutilação genital às raparigas de Mossul.

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    1. Não podemos confundir tradições, costumes e/ou religiões. Todos têm direito a ser, ou não ser.
      Tal como, incontestávelmente, Israel tem direito às suas tradições, costumes e/ou religião, o mesmo têm/devem tolerar aos outros, sejam quem forem. Ora não é o que Israel faz, embora nem todos os Israelitas aprovem.
      Também os Sionistas não se podem sobrepor aos povos que proliferam pelo mundo, pelo facto de a sua Bíblia(thora) lhes induzir o conceito de "povo de Deus" e, a partir dessa falácia, se permitirem horrívelmente a sacrificar os que não os seguem ou, obedecem nesse contexto.
      Pensemos como pensamos e, sintamos o que sentimos, o ser humano SEJA QUAL FOR E, DE ONDE VIER, tem que ter direitos e, também deveres. O que não pode é ser martirizado seja qual for o sexo, a idade as condições em que viver.
      O que Israel está a perpetrar não tem, nem pode ter,qualquer tipo de desculpa e, subjugação porque é hediondo.
      Não se podem, não devem, nem podem ser permitidas tamanhas atrocidades. Não tem nem compreensão e, muito menos desculpa. E, sou eu a dizer, sendo de origem Judaica através dos Cristãos novos, Judeus ostracizados ao tempo do Marquês de Pombal.

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  2. O objectivo último de Israel, assumido, por entre linhas ou explicitamente, é a "solução final" por muito que tal designação seja chocante.É o apoderamento da terra da Palestina limpa de palestinianos. A estratégia sionista aceite contemplativamente (ou proactivamente pelos EUA quando atiçam ou premeiam e apoiam e municiam o seu Roteweil do Oriente Médio) pela comunidade internacional, passa por todos os processos canónicos ou não: massacre directo, apoio discreto aos massacres perpetrados pelos países árabes contra os palestinianos, intervenção e provocação contra os Estados limítrofes (Israel é uma amiba: único Estado no mundo que não tem fronteiras traçadas,usando os seus pseudópodos sobre o Líbano, a Síria...), assassinatos políticos (aqui os EUA pedem messas). Nos seus tempos a primeira ministra Golda Meir disse entre muitas, duas coisas definitivas:"Nós nãoprecisamos dos palestinianos para nada - temos os nossos próprios operários e agricultores" e "Nunca perdoaremos aos árabes obrigarem-nos a matar os seus próprios filhos". Há alguns anos, não me lembro se cinco, sete, mas tenho ainda escrita na retina a frase, o representante de Israel na Comissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra, dizia para os seus pares: vocês fazem resoluções e nós construímos colonatos. Para o Estado de Israel os palestinianos ou vão para a Jordânia "onde pertencem" ou são mortos paulatinamente ou com operações dedicadas, como Sabra e Chatila, como a do "Chumbo Fundido" e esta agora. Demore o tempo que demorar, a solução final está em curso. Daí que todos os Estados que não condenarem liminarmente os actos e as bases históricas, ideológicas e políticas de que se reivindica o Estado terrorista de Israel são participantes activos no genocídio; pois é disso que se trata de acordo com as mais conspícuas definições do Direito Internacional. Daí, ainda, que seja inadequaddo falar em colonialismo e em appartheid: é simplesmente genocídio paciente, programado por forma a não desinquietar excessivamente a comunidade internacional e não comprometer os seus aliados de sempre: os da civilização ocidental, os tais que querem ver a balança equilibrada! Os assassinos de voz meiga como os que nos governam em nome de valores inquestionáveis.

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    1. Caro Mário Tomé, discordo. A descrição mais apropriada do que sucede no Levante mediterrânico, para mim, é colonialismo. Quanto às causas e motivos, esta notícia do Ha'aretz fala por si: http://www.haaretz.com/mobile/1.609919?v=8F13CF49D4475B86128120D26FF8D121

      O sistema científico israelita, e volto a dizê-lo porque não é um dado muito conhecido, é um dos mais sofisticados, bem financiados e militarizados do mundo. Esse é o coração da besta.

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