05 agosto 2014

Eles regulam tudo e ninguém gosta nada

Apetece-me dizer duas ou três coisas acerca das reacções tonitruantes ao Novo Banco e ao modo regulador do Banco (não tão novo) de Portugal. Isto soará a defesa do Banco de Portugal. Não é. Por mim, fechava-se e fazia-se um regulador totalmente novo, com um paradigma de regulação totalmente diferente. Mas este é o mundo em que vivemos.



1. Solução diferente.

O paradigma dominante é aquele que já conhecemos. Até agora, à esquerda, ouvi e li muitas críticas à acção do Banco de Portugal, mas poucos exercícios de concepção de um sistema bancário inteiramente novo, que tornasse plausível uma solução diferente daquela que foi implementada pelo regulador. Também já li que esta solução é tão má como a Parups/Parvalorem. Não é. Pode ser má, mas é melhor que a outra. Mostra traços de iniquidade? Mostra. É injusta para muita gente? É. Mas também é justa no sentido de obrigar accionistas e detentores de obrigações subordinadas, mais rentáveis e arriscadas, a suportar perdas. Parece óbvio, a leigos como eu, que o problema fundamental é a valoração do Novo Banco e a sua estrutura de governo. Um BES novo, depois do último mês e mesmo com todas as empresas GES de boa saúde, não poderia valer 4400 milhões. É impossível. A ministra das Finanças diz que os juros do empréstimo do Fundo de Resolução Bancária sofrerão aumentos trimestrais, para incentivar uma acção mais forte dos membros do sindicato bancário. Dúbio. A estrutura de governo deste veículo - um novo concorrente detido por todos os outros grandes concorrentes? - incentiva uma resolução lenta e operações opacas para manipular contas e contabilidades.

2. Modos de regulação.

A sério, alguém esperava algo de diferente do Banco de Portugal e respectivo governador? Alguém ainda se recorda de Vítor Constâncio? Vejamos: o Banco de Portugal é um banco central neoliberal, na linha do Bundesbank. A sua função percebida é a manutenção de uma taxa muito baixa de inflação (portanto, é uma agência do BCE em Portugal) e a implementação de regulação "light touch". É assim que a instituição pensa. Desse ponto de vista, o Banco de Portugal deu um salto gigante. E faz falta dizer isto: em vez de alarmismos acerca das consequências de uma lehmanização do BES, eu gostava de ver dados. O que aconteceria, se se deixasse o BES ficar insolvente? O Fundo de Garantia de Depósitos aguentava? Talvez. Todas as empresas expostas ao BES aguentavam? Talvez. Mas não se tomam decisões e posições baseadas em talvez. Fazem-se eventos no Facebook a pedir cabeças e sangue baseadas em talvez, mas não se tomam posições sérias. Isto deve ser um ponto de debate.

O Banco de Portugal fez o que conseguia. O problema é o paradigma regulatório. Um banco central neoliberal, ao contrário do que se diz por aí, não quer afastar o Estado da economia. Para estes bancos centrais, nós somos o colateral e o Estado é uma das garantias de uma gigantesca aposta. Como é que isto se regula? Através de coisas como o Banco de Portugal até 2007/2008, quando a supervisão comportamental nem sequer existia. Há poucos anos, Salgado dizia que um certo partido tinha uma obsessão patológica com a sua fortuna. Percebe-se, agora, a obsessão.

Quanto a modos de regulação, também fico perplexo ao observar o seguinte exercício: brada-se contra o regulador e diz-se que esta regulação é má, ou ainda melhor, que toda a regulação é má. Vejamos: a regulação é uma invenção liberal. A contenção de prejuízos, a privatização de ganhos e a socialização de perdas é uma das causas e consequências da regulação liberal. Por isso, vociferar contra isto é como vociferar contra o vento porque assobia. Se queremos algo diferente, façamos algo diferente. Cortar pão com um garfo é, em definitivo, uma má ideia, se quisermos que ele funcione como faca. Dito isto, fica a ideia de que é preferível não regular a regular mal. Mas um garfo também corta pão, embora corte mal. Em regulação, e se não queremos mudar de paradigma - questionar o primado da propriedade privada, por exemplo, ou a ideia de que uma aplicação financeira nas Ilhas Caimão é a melhor forma de financiar um pequeno negócio -, é preferível fazer alguma coisa que não fazer nada. E sim, o dinheiro dos contribuintes vai voltar a cobrir as malfeitorias da burguesia. Mas os contribuintes, seja lá o que isso for, não se recusam a pactuar com a lógica do sistema financeiro. Em vez disso, voltaremos, neste blogue e noutros locais, a ter de argumentar pelo Estado social, pela escola pública, pelo SNS e por todas as coisas que o capitalismo apocalíptico quer engolir, quando o casino explode e a burguesia fica queimada.

Além de tudo isto, quem discursa acerca do Banco de Portugal parece não saber a) como o Banco está estruturado e b) como os diferentes departamentos, secções e núcleos do banco estão providos, em termos de pessoal e recursos técnicos. Sendo assim, porque é que se critica, agora, uma instituição que não estava ou está preparada para hecatombes como a do BES? Porque é que não se exigiu um reforço substancial das equipas inspectivas, um alargamento das competências e mandatos dos inspectores e obrigações draconianas de reporte a impor aos bancos privados? Sim, é muito giro falar em roubalheiras e falhas de regulação, mas convém perceber onde residem essas falhas, por que razões existem e como o regulador pode colmatá-las. Nenhum regulador pode ser eficaz com um sistema financeiro tentacular como aquele que domina o mundo. O Banco de Portugal não pode fechar offshores, não pode proibir operações OTC, não pode proibir HFT, não pode impedir venda ilícita de obrigações e lavagem de dinheiro e não pode definir o modo de funcionamento de um banco privado. Uma instituição presa a um paradigma podre não pode mudar. Além disso, há demasiadas variáveis que lhe são exógenas, e pedir a um técnico do Banco de Portugal que telefone para George Town, Ilhas Caimão, que fechem o estaminé e deixem de dar guarida a capital suja é, no mínimo, bizarro.

Em suma, pedir sangue e gritar roubo é sempre bom, vende sempre jornais e põe gente na rua. O problema é que pedir sangue e gritar roubo legitima o paradigma dentro do qual a sociedade portuguesa tem funcionado.

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