11 agosto 2014

Escuridão visível



O lixo não tem que dormir na rua, mas as pessoas podem dormir por lá. É isso, não é?  Percebemos que uma sociedade complexa está em colapso através destas coisas.

Quando um homem, mirrado pelos anos, pelo sol endurecido, pelo álcool e pelo pugilismo da realidade (o KO deve ter ocorrido por volta dos trinta anos, penso eu, ao observá-lo e ouvi-lo), entra numa tasca, em Sapadores, pressinto esse colapso. Porque cheira a vida perdida e tresanda a solidão. E porque só procura uma torneira para encher uma garrafa vazia, etiqueta do Luso encardida e meio rasgada. Entra na tasca. Murmura "bom dia" com um sotaque beirão, que, descubro daí a minutos, ganhou em Viseu. Empunha garrafa de água e procura o olhar de quem se afadiga a servir almoços. Pode ser que tenha sorte. Pode ser que tenha a mesma sorte dos detentores de dívida sénior do BES.


Subitamente, uma voz tonitrua. "Porco, cheiras mal, põe-te a andar daqui para fora". Os olhos chispam. As mãos continuam a abrir aquilo que parece ser correspondência. Tento voltar-me para trás. Não tem mais de setenta anos. Os olhos estão vazios, desdizendo o fel da voz. Olho para ela, de cabelo emproado, e penso em Goya, em Arendt e em Zimbardo. O sono da razão produz monstros, mas os monstros surgem porque as pessoas já não reconhecem a obrigação de pensar e humanizar. Reconheço o meu país no vazio do olhar desta mulher. "Cheiras mal, vai-te embora, esta gente suja só anda aqui a ocupar espaço". O homem (chamemos-lhe C.) encolhe-se, surpreendido. O cheiro parece pulsar com mais força, acicatado pelo reconhecimento da sua presença e pela recusa da humanização de quem o exala.

Na sala, ninguém reage. Eu tento processar o fluxo de fúria que assoma à cara e à mente, mas também não reajo. Reagirei, daí a minutos, mas, por agora, ouvimos, em conjunto, uma voz que podia ser a nossa voz colectiva. "Sai já daqui, seu porco imundo. Uma pessoa não pode almoçar descansada. Que nojo". Enquanto abre mais cartas, continua a regurgitar fel. A reacção colectiva surge. Dirigida ao homem tisnado, de boné sem marca, que murmurou "bom dia", num tom servil que julgamos pertencer a uma era finda. E eis que um dos afadigados com o serviço se pronuncia. "Vá, vamos embora, tens que sair daqui". Porque o cliente tem sempre razão, e quem pede água não é cliente. Quem desumaniza enquanto abre correspondência, à espera de um almoço que o homem tisnado não vislumbra, julgo, há mais anos do que eu tenho vividos, enquanto aplana o cabelo pintado, merece um tratamento deferencial. Tal como os beneficiários do RERT. Tal como os accionistas. Tal como os donos de hedge funds.

O que aconteceu depois é irrelevante. O que aconteceu depois mostra que Lucien Febvre, um dos meus mestres, tinha razão ao dizer que Rabelais não podia ser ateu no século XVI. Era pura e simplesmente impossível, apesar das leituras pós-modernas de Gargântua e Pantagruel. Nós também não conseguimos ser solidários, não de forma automática, num mundo social em que nos tornamos, primeiro desagradados e depois apagados, rodas numa engrenagem fabril. E é normal que o lixo não deva ser obrigado a dormir na rua, mas os espigões à porta de bancos e hotéis sejam aceitáveis. Porque nós somos recursos humanos e não pessoas. Somos servos do mercado e não pessoas.

Quando voltei à tasca, depois de sair a correr para descobrir que C. teve uma família, que C. só queria que lhe tivessem retorquido "bom dia", que C. só queria ter enchido a garrafa, fiquei a pensar em versos. Nestes versos:

No light; but rather darkness visible
Served only to discover sights of woe,
Regions of sorrow, doleful shades, where peace
And rest can never dwell, hope never comes
That comes to all, but torture without end
Still urges, and a fiery deluge, fed
With ever-burning sulphur unconsumed.
John Milton, Paradise Lost, Livro I, v.63-69

1 comentário:

  1. Muitas estórias semelhantes a esta vejo-as eu acontecer, infelizmente, todos os dias nas ruas da minha cidade. Não sei o que aconteceu aos portugueses. Sei que são mentiras as tetras do povo afável e acolhedor propagandeadas para vender Portugal aos estrangeiros. Só me apetece fugir (tenho pena de ter tanta idade e pouca saúde para o fazer). Um grande agradecimento ao Luís Bernardo por não se deixar corromper pela peste da desumanização que parecer contaminar quase toda a população, desde as elites aos mais explorados.

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