11 agosto 2014

Uma sociedade dilacerada pela injustiça

Esta tabela, embora simples no alcance, oferece-nos material para uma análise suficientemente rica daquele que será, porventura, o maior flagelo que atravessa a sociedade portuguesa: a desigualdade.


Uma interpretação que certamente muitas pessoas farão é a de que “afinal, os ricos pagam muito mais impostos”. Certamente que “cada rico” paga muito mais impostos sobre o rendimento em valor absoluto, ainda pior estaríamos se assim não fosse. E, em termos relativos, regra geral também pagam efetivamente mais, dado que as taxas de imposto são supostamente progressivas (porém, como irei desenvolver daqui a pouco, talvez não tanto como possa parecer à primeira vista, e talvez em certas faixas sejam mesmo regressivas em vez de progressivas). Convém igualmente não esquecer que rendimento e riqueza estão ligados, mas são conceitos distintos.

Portugal é um país em que quase dois terços (65,6%) das famílias (com composições em termos de número de membros que são variáveis, como a legenda nos indica) têm um rendimento colectável (o rendimento colectável de uma família é o seu rendimento bruto subtraído de 4.104 euros, que são livres de impostos) abaixo dos 10.000 euros, sendo que o rendimento nacional bruto per capita se situava (previsão) em 2013 nos 15.512 euros. No entanto, há obviamente um desfasamento entre o conceito de família e o de per capita, pois em média uma família tem mais do que um membro: cada família tem, em média, 2,28 membros (a explicação detalhada deste cálculo e dos seguintes está no final do texto). Levando isto em conta, obtemos um valor médio na ordem dos 35.389 euros de rendimento bruto nacional por família. Assim, podemos ver que quase dois terços da população residente em Portugal tem um rendimento que, no topo do escalão, é apenas 39,8% do médio. Alargando o espectro das famílias mais pobres aos rendimentos até 20.000 euros, temos que 83,8% das famílias têm um rendimento que, no topo do escalão, corresponde a 68,1% do rendimento familiar médio. 

Portugal é, assim, um país rasgado pela desigualdade no que à distribuição dos rendimentos diz respeito. Um país em que dois terços da população vive no máximo (isto é, no topo do escalão) com 6.186 euros (em média, dado que os agregados têm composições diversas), mas em que o rendimento médio se situa nos 15.512 euros.

Mas convém também ir ao que a tabela não mostra, pois foca-se apenas no IRS e não no total de impostos que uma pessoa enfrenta. Assim, a tabela deixa de lado o tratamento fiscal real que as pessoas de diferentes rendimentos têm. Assim, o que é péssimo mas que o sistema fiscal poderia ajudar a compensar pode, na verdade, ser pouco ou nada compensado pelo sistema fiscal.

Antes de mais, as contribuições para a Segurança Social cortam o rendimento dos trabalhadores em 11%, sendo este corte não progressivo (pelo que afeta muito mais a vida das trabalhadoras e dos trabalhadores que recebem salários mais baixos) e atingindo apenas os rendimentos do trabalho, deixando de fora rendimentos que advém de outras fontes. Por outro lado, impostos como o IVA, com taxas universais, são também impostos não progressivos (embora teoricamente as taxas vão aumentando à medida que o produto se torna menos essencial – e, assim, menos consumido pelos mais pobres -, na prática isto tem tido uma concretização muitíssimo limitada). A juntar a esta realidade, as deduções fiscais favorecem, regra geral, muito mais as pessoas com rendimentos mais altos, pois estas fazem mais despesas que são qualificáveis de ser reembolsadas (tais como gastos em saúde privada).

Antes de escrever um dos livros mais badalados dos últimos meses, Thomas Piketty tinha, juntamente com outros dois economistas (Camille Landais e Emmanuel Saez) estudado o sistema fiscal francês e observado que este falha no seu propósito de ser fortemente progressivo, sendo até, para certos escalões de rendimento, regressivo.


O gráfico (retirado daqui) mostra-nos precisamente isto: uma fraca progressividade do imposto até aos escalões intermédios de rendimento e uma regressividade gigantesca do dito para os escalões mais elevados. A maior parte dos "1% mais ricos" pagam mesmo, em termos relativos, menos impostos do que os indivíduos mais pobres da sociedade francesa. Os autores concluem que “a injustiça do sistema fiscal explica-se, antes de mais, pelo fracasso do nosso sistema de impostos sobre o rendimento, que em princípio deveria compensar a regressividade dos impostos sobre o consumo e as contribuições para a Segurança Social, mas na realidade não faz mais do que reforçar essa regressividade”.

A situação portuguesa, em que não só a distribuição de rendimentos é muitíssimo injusta, mas em que também o também o sistema fiscal, que teoricamente serviria para lhe retirar alguma injustiça, falha, foi aqui exposta. Porém, como o trabalho destes 3 economistas sobre o caso francês nos parece indicar, não é caso único, sendo provavelmente um traço distintivo das sociedades capitalistas contemporâneas.

Finalmente, rendimento não é riqueza, e a justiça na vida e na economia não poderá ser só analisada sobre aquilo que foi obtido nesse ano: a riqueza é aquilo que foi acumulado ao longo dos anos, e pode dar-se o caso que famílias com rendimentos baixos num dado ano tenham em sua posse, devido a acumulação anterior, quantidades substanciais de ativos de vária ordem. Fugindo à análise geral deste texto, esta realidade não pode ser esquecida, pois os desfasamentos na distribuição da riqueza contribuem para aumentar ainda mais a desigualdade dentro de uma sociedade.


Notas sobre os cálculos efectuados no 3º e 4º parágrafos:
- Tendo em conta que o Ministério das Finanças considera que existem 4.626.902 famílias em Portugal (como apresentado na tabela) e tendo em conta que os Censos de 2011 apontam para que Portugal tenha 10.555.853  habitantes, temos que cada família tem, em média, 2,28 membros. 
- Multiplicando este valor pelo rendimento bruto nacional per capita (15.512*2,28) chegamos a um valor médio na ordem dos 35.389 euros de rendimento bruto nacional por família.
- Os 39,8% do médio são obtidos dividindo os 10.000 acrescidos dos 4.104 que ficam de fora da base colectável pelos 35.389. Há que notar que isto é uma extrapolação, há sempre imprecisão nestes cálculos dado que a distribuição do número de elementos por agregado familiar provavelmente não será uniforme pela escala de rendimentos. Há que notar ainda que há outros meios mais fiáveis de chegar a estes dados, mas que implicavam uma complexificação da natureza dos dados a tratar.
- Os 83,3% são obtidos somando 65,6% a 18,2%.
- Os 68,1% são obtidos dividindo os 20.000 acrescidos dos 4.104 que ficam de fora da base colectável pelos 35.389.
- Os 6.186 são obtidos dividindo os 14.104 por 2,28.

2 comentários:

  1. https://drive.google.com/file/d/0B2jQ63QVAgL6SG1aNTZMRWp4Nlk/edit?usp=sharing
    O problema em Portugal é que sempre que se queira prestar contas do que se ganha, existirem sempre uns malandros prontos a desviarem o País dos objectivos a que se propõem... Que é como quem diz, desvia-se a baliza, e quem paga é o público!

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  2. https://drive.google.com/file/d/0B2jQ63QVAgL6TEJiYTJVLWNYR2s/edit?usp=sharing
    https://drive.google.com/file/d/0B2jQ63QVAgL6cjNIZlNydE84TXM/edit?usp=sharing
    https://drive.google.com/file/d/0B2jQ63QVAgL6eC1xaW9reEFfc00/edit?usp=sharing

    Ou então, cai-se na linguagem tecnocrata dos tauromáquicos da politiquice banqueira... Veja-se lá que andam muito em voga, mas deste senhor nem uma única palavra! Deve ser por causa da ausência do Professor Francisco Louçã...

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