30 setembro 2014

Conservadores 0, Feministas 1


Sí, se puede. O Estado Espanhol não regrediu 30 anos e os valores da autodeterminação e da dignidade venceram nas ruas o conservadorismo fascinado com a perseguição das mulheres.

A semana que passou chegou com uma boa notícia, aliás uma estrondosa boa notícia. Não consigo pensar noutros termos quando recordo o anúncio do primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, de que a proposta de reforma da lei do aborto do seu governo tinha sido retirada. Logo a seguir, ficámos a saber que o autor da proposta, o então Ministro da Justiça, Alberto Ruiz-Gallardón, se demitiu e até se reformou da política. Gallardón bateu com a porta quando percebeu que caiu por terra a hipótese de colocar a Espanha no topo do ranking dos países europeus com as leis do aborto mais restritivas. O que é mais caricato nesta reviravolta é que, agora, Gallardón sairá à rua não com medo de ser perseguido por feministas empunhando cartazes a dizer “Yo decido!” e “Libertad!”, mas sim pelos fundamentalistas conservadores e católicos zangados, porque perderam a hipótese de se vingarem da modernidade e da democracia instalada.



O que estava em jogo era uma proposta de reforma da lei do aborto que afirmava o critério da crueldade, do castigo e da punição a um nível que só o fanatismo poderia defender. A então chamada “Lei Gallardón” implicava um regresso à lei de 1985 e determinava que a interrupção de uma gravidez não desejada deixaria de ser um direito da mulher nas primeiras 14 semanas de gestação – um direito que existe desde 2010 – e que assim voltaria a constituir um crime despenalizado em apenas duas circunstâncias, a saber, violação e “grave perigo para a vida ou saúde física e psíquica” da mulher. Porém, a possibilidade de invocação destas duas únicas situações seria também bastante restrita e sujeita a uma rigorosa deliberação médica e a um longo processo, o que tornaria esta lei mais restritiva do que a do século passado. A presença de malformações fetais graves não poderia ser um motivo para abortar, talvez apenas, e se muito bem fundamentado, o efeito psicológico de tal situação se verificar na mulher grávida.

O governo de Rajoy e do Partido Popular sai derrotado neste processo porque desistiu de uma das suas reformas mais emblemáticas, embora também muito polémica até internamente, porque, apesar de todas as contas eleitorais possíveis, perdeu milhares de votos, incluindo até aqueles votos de um centro conservador que ainda assim não é medieval e, sobretudo, porque foram as ruas transbordantes exigindo poder de decisão para as mulheres, dignidade e liberdade que constituiu o “não consenso social” evocado na decisão da retirada da proposta. Mas o “não consenso social” foi, na verdade, uma gigante onda feminista que percorreu todo o território espanhol, europeu e ainda galgou o oceano para chegar à América Latina. Estamos perante uma vitória que o movimento feminista internacional só pode sublinhar como exemplo de resistência, de ação coletiva e do poder que as solidariedades podem gerar.

Estive no cinema São Jorge, este domingo, e pude assistir à projeção do filme "Yo decido. El Tren de la Libertad", realizado por um coletivo que reuniu dezenas de realizadoras espanholas. Emocionei-me. Muitas das mulheres entrevistadas foram protagonistas das lutas pelo aborto travadas nos anos 1970 e 1980. No início de 2014, voltaram a sair à rua para impedir que esse direito e o seu corpo fossem de novo confiscados pelo Estado. Têm mais 30 anos de vida, mas a mesma força. Entre elas há milhares de jovens indisponíveis para viver sem liberdade. O que fizeram foi extraordinário, porque interromperam o tempo para dizer, com a força de milhares de vozes e em várias línguas, que voltar atrás é impossível. A determinação da história não pertence nem à história, nem ao tempo, mas a todas elas.

Contudo, convém estar alerta. Os direitos conquistados nunca são dotados de eternidade. As mulheres do Estado Espanhol bem o sabem. O primeiro-ministro espanhol Mariano Rajoy disse que vai mudar a lei na mesma para que as menores precisem de uma autorização dos pais para abortar e espera a decisão do Tribunal Constitucional sobre a avaliação que requereu da lei de 2010.

E nós, por cá, ainda temos a turma da Isilda organizada e um governo de direita que já várias vezes acenou com restrições na lei do aborto que resultou do referendo de 2007. Além disso, a própria lei ainda tem muitos defeitos, o acesso ao aborto ainda é muito condicionado em muitas zonas do país, a desinformação ainda é a regra e o prazo das 10 semanas é muito curto.

A nossa liberdade ainda é condicionada.


Artigo publicado no portal www.esquerda.net.

 

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