23 setembro 2014

Presidenciais Brasileiras: a fé que move montanhas... de votos



A entrada fulgurante de Marina Silva na disputa pelas presidenciais despertou velhos demónios na sociedade brasileira. Ao apresentar-se como a predestinada sobrevivente do acidente que vitimou Eduardo Campos a candidata levantou o véu sobre a relação entre a religião e a política num país onde o número de evangélicos não pára de aumentar nos últimos anos. Marina é uma confessa missionária evangélica, tendo afirmado recentemente que a Bíblia é uma fonte de inspiração para a tomada de decisões. Com todas as sondagens a ditarem uma segunda volta com Dilma, o epíteto de fundamentalista foi de pronto arremessado pelas hostes do PT.

Acontece que de acordo com as pesquisas o voto dos evangélicos afigura-se como o mais decisivo na disputa da segunda volta. Dilma e o PT não perderam tempo. Um "Manifesto dos Evangélicos com Dilma" foi lançado nesta terça-feira, onde se pode ler: "como somos exortados a não precipitar em palavras e no coração nas nossas decisões diante de Deus (Ec.5:2), cremos que não há exigência maior a nós evangélicos para esta vida do que a prudência na escolha do candidato ou candidata a presidente que vai se empenhar de verdade pelo nosso bem estar e de nossas famílias durante o seu governo. Dessa forma, até 05 de Outubro de 2014 vamos orar, pensar, conferir e separar a verdade da mentira, os fatos dos boatos porque, fazendo assim, temos certeza de que iremos votar confiantes em Dilma Presidenta para o Brasil continuar melhorando, para o Brasil mudar mais."

Estima-se que no Brasil o número de evangélicos chegue já aos 42 milhões (22% da população), com uma presença cada vez mais forte das igrejas pós-pentecostais. Esta ramificação do protestantismo, originalmente de cariz renovador, transformou-se num movimento ultraconservador apoiado numa teologia da prosperidade onde o elogio à opulência e a defesa da guerra espiritual “contra os demónios” que provocam os problemas sociais marcam o tom. O forte controle que exercem sobre os seus fiéis – arrecadação de dízimos, restrição do consumo do álcool, intervenção direta na vida quotidiana das famílias – concede às suas lideranças um grande poder social. As mais conhecidas, que marcam presença também em Portugal, são a IURD e a Renascer em Cristo. Ambas possuem mais de uma estação de TV, dezenas de rádios, jornais diários, gravadoras, agências de viagem e linhas de confeção.

A prática de cartel de votos evangélicos é um fenómeno bem conhecido*, com consequências dramáticas. Atualmente no Congresso brasileiro constitui-se a designada “bancada evangélica”, uma frente parlamentar composta por deputados-pastores e líderes evangélicos de vários partidos que bloqueiam permanentemente propostas emancipadoras como a legalização do aborto, o casamento gay, a eutanásia e a legalização da prostituição. Esta frente, que perde em número de deputados (pelo menos 73) apenas para a “bancada ruralista” que defende os interesses do agronegócio, avançou no ano passado com a proposta do “estatuto do nascituro” que prevê a proibição do aborto em quaisquer circunstâncias e o agravamento da criminalização da mulher que aborte. No enfrentamento à bancada evangélica, o deputado do PSOL e destacado militante do movimento LGBT, Jean Wyllys, tem protagonizado combates ferozes e muito mediáticos, tendo recebido já várias ameaças de morte ao longo dos últimos anos.

O avanço do poder político das igrejas evangélicas é um fenómeno conhecido no contexto latino-americano. A forma como exercem o seu controlo social através de uma comunhão carismática extremada - alcançando picos de delírio coletivo - e de uma moral ultraconservadora que demoniza flagelos sociais como o consumo de crack explica, em parte, o seu crescimento acelerado nos últimos anos. O imobilismo geográfico e quotidiano que impõem aos seus fiéis, na sua maioria trabalhadores e trabalhadoras pobres, serve também ao processo de expansão e acumulação de capital que vive hoje a economia brasileira; a totalidade do culto na vida quotidiana deixa pouco espaço à expressão de descontentamento organizado fora da igreja, uma dinâmica completamente oposta à impulsionada pelas “comunidades eclesiais de base” inspiradas pela teologia da libertação nas décadas de setenta e oitenta, historicamente aliadas da esquerda política.

A vinda de Francisco, o novo Papa superstar que agitou a vida dos brasileiros por uma semana em julho do ano passado, deve ser interpretada também neste contexto de disputa pelas pautas conservadoras. Enquanto os evangélicos clamam pela riqueza futura de cada fiel o Papa trouxe os seus sapatos gastos e velhos, piscou o olho aos manifestantes e visitou comunidades pobres do Rio de Janeiro. Francisco sabe que sem a capacidade de controle social, que implica uma moral revigorada e um consenso de poder nas estruturas eclesiásticas, a igreja católica arrisca-se a ficar na prateleira da história.

As eleições são a 5 de outubro, nada lhes faltará.

*Historicamente a IURD apoiava os governos da direita, enquanto o Movimento Evangélico Progressista apoiava o PT. Desde a eleição de Lula, porém, o PT aproximou-se do campo mais conservador, com a IURD a apoiar a eleição de Dilma em 2010. O preço foi o a queda da proposta descriminalização do aborto, anteriormente defendida por Dilma e muitos setores do PT.

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