26 novembro 2014

Os Call Centers e a instável substância do tempo



Há uma pergunta que me tem perseguido incessantemente e para a qual nunca consegui dar uma resposta convincente: por que razão aos 16 anos gostei tanto de trabalhar no McDonalds, quando recebia a miserável quantia de 2,55 euros à hora e não tinha qualquer estabilidade de horários? Embora tenha estudado um contexto organizacional diferente, é também sobre esses processos que fala João Carlos Louçã no seu livro “Call Centers – Trabalho, Domesticação e Resistências” (Deriva, 2013). Nele encontramos uma análise cuidada sobre os modernos processos de exploração, os dispositivos mais subtis e eficazes de produção de consentimento e as formas de resistência que, num contexto tão desfavorável, ainda assim se fazem sentir.  

João Carlos Louçã mergulha nas vidas de 19 trabalhadores/as de várias idades, experiências profissionais, origens familiares, habilitações, tipos de contrato e funções organizacionais. Não ambicionando uma caracterização extensiva, o livro permite um olhar intensivo sobre as dinâmicas do trabalho, da sua organização e das identidades e resistências que nele emergem. Nenhum outro estudo em Portugal chegou tão longe na visibilização dos mundos ocultos dos Call Centers a partir das histórias dos seus protagonistas. 

Estes espaços representam uma organização do trabalho onde a precariedade é o sufoco de quem “de contrato em contrato” adia permanentemente a sua vida. Neles “os momentos de renovação de contrato são momentos de stress e dúvida para muitos trabalhadores/as (…) as pessoas sentem-se invariavelmente à disposição das flutuações da necessidade de mão-de-obra, da arbitrariedade do mercado de trabalho, da subjetividade dos critérios de avaliação do seu desempenho” (pp.77). Esta arbitrariedade é a marca de todo o trabalho estruturalmente organizado em processos de avaliações que constituem verdadeiros dispositivos de poder em que quem trabalha é a parte mais desprotegida.

Recensão publicada na Revista Vírus 


A instabilidade característica da renovação de contrato contamina todo o “espírito da empresa” subvertendo alguns dos fatores mais elementares das relações de trabalho: a estabilidade do horário e a segurança de um salário. A subversão é absoluta: para ter um salário que ultrapassasse os 500 euros é preciso ser merecedor de prémios de produtividade. É uma verdadeira “corrida atrás da cenoura” (pag.73) que ajuda a sedimentar a lógica da “produtividade como ideologia” (pag.68). O controlo dos espaços e ritmos de trabalho e socialização é fundamental, sendo feito através de um implacável sistema de gestão informatizada do tempo que controla, ao segundo, os horários e as pausas. Um disciplinador panóptico foucaultiano, mas informatizado e com vigilantes permanentes.

Esta instabilidade produz um cansaço psíquico que todos os trabalhadores entrevistados referem. Um cansaço em que “já nos é difícil ouvirmos-mos a nós mesmos” (entrevistada Lara, pp.61), mas que é mitigado por novas estratégias de gestão que disseminam o “espírito de equipa”, a “humanização dos espaços de convívio no trabalho” e as sessões de “Team Building”, onde se ameniza o conflito e se vende a ilusão da horizontalidade da empresa. 

João Carlos Louçã apoia a análise das dinâmicas dos Call Centers num quadro sólido do marxismo crítico e antidogmático, na antropologia económica de Susana Narotzki e na antropologia das resistências de James C. Scott. Mas este quadro é completado com uma pluralidade de referências: as questões das desigualdades, das classes e do trabalho nas sociologias de Robert Castel, Bourdieu, Burawoy, Renato Miguel do Carmo, Elísio Estanque, Nuno de Almeida Alves ou Boaventura Sousa Santos; na filosofia militante de Daniel Bensaid; na historiografia sociocultural de E.P. Thompson; e finalmente na voz dos/as ativistas precários no livro “Dois anos a FERVEr, retratos de luta, balanços de precariedade” do coletivo FERVE. Este quadro dinâmico é mobilizado no que o autor muito bem chama uma “antropologia comprometida com os direitos humanos e com as raízes em todos os processos históricos que apontaram caminhos para a emancipação” (pp.18).

É por isso que neste livro a análise dos Call Centers é inscrita no quadro de uma sociedade de classes, de conflitos e de interesses contraditórios entre quem vive do seu trabalho e quem vive da exploração do trabalho de terceiros. Propõe um entendimento das relações laborais não apenas em termos das categorias da posição na produção – facto que, muito bem identifica, remeteria para uma “perceção individualizada das situações de classe” (pag.28) -, mas sobretudo na análise da organização da produção enquanto conjunto de relações sociais dinâmicas, dialéticas e necessariamente conflituais onde emergem processos de resistência.  

Sophia de Mello Bryner em “Nomes das Coisas” [1977] publicava um poema sobre 25 de Abril onde se referia a uma madrugada “onde emergimos da noite e do silêncio e livres habitamos a substância do tempo”. Essa será uma das principais características dos processos de emancipação: neles habitamos a substância de um tempo concreto no qual vivemos sem amarras; e neles projetamos o tempo futuro enquanto possibilidade de caminhar num sentido definido pelo poder das nossas ações. É também dessa substância do tempo que nos fala João Carlos Louçã.

Os Call Centers representam o tempo enquanto palco de conflitos. Refletem um tempo congelado que inviabiliza o presente e o futuro, ilustrando um “novo campo nas relações laborais onde regridem, em grande medida, os direitos conquistados pelas gerações do pós-guerra” (pp. 20), mas refletem também um tempo em que as contradições do processo de exploração fazem emergir, mesmo nos terrenos mais difíceis, formas de resistência subterrâneas, mais individuais ou mais coletivas, que se experimentam diariamente. São os sujeitos dessas resistências, esse “novo proletariado” a que se refere o entrevistado Ricardo (pag.24), que vemos na rua à porta dos locais de trabalho:

“A rua é o local de escape de liberdade, palco de conversas ocasionais, para a escolha dos grupos de socialização, para identificações coletivas, para cada pessoa que trabalha voltar a ser, por momentos, dona do seu tempo. Nem que seja só para recuperar energias e ser capaz de voltar ao trabalho” (pp.80)

Haverá um dia em que a energia que se ganha na rua quando se faz uma pausa poderá não ser apenas para voltar ao trabalho mas para ocupar a substância do tempo. Pelo rumo da vida e pela brilhante análise que João Carlos Louçã nos desvenda, há fortes razões para acreditar que esse dia será mais cedo do que tarde. 

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