16 janeiro 2015

A roleta grega e as mistificações de Manuel Villaverde Cabral




Só posso ter respeito pelo percurso académico de Manuel Villaverde Cabral. É precisamente por isso que não posso fazer qualquer reverência às prosas políticas e ideológicas a que se tem dedicado nos últimos anos e sobretudo nos últimos meses no Observador. Esta semana o seu raciocínio foi o cúmulo: consegue desenvolver um argumento inteiramente correto, com pressupostos politicamente irracionais.

O argumento do sociólogo é simples mas muito coerente: o futuro da Europa está verdadeiramente em aberto depois das eleições gregas e do significado que elas tenham nas restantes eleições que vão acontecer em 2015. O argumento está correto mas a explicação errada. É que para Villaverde Cabral, a roleta grega não abre esperança numa possibilidade de reversão das políticas de austeridade mas sim num temível fim da União Europeia e da moeda única. A explicação é simples: em 2015 estamos na eminência ou da obediência cega à austeridade, ou da morte de qualquer perspetiva política europeísta. A escolha a que o autor nos interpela resume-se de forma simples: ou aceitamos morrer da austeridade ou aceitamos a morte da europa. Felizmente, há mais vida além do simplismo.

Villaverde Cabral sabe tão bem como qualquer cientista social que quem quer fazer um debate na posição do cartomante que adivinha o futuro dos processos sociais só pode utilizar a futurologia como uma forma irracional de esgrimir argumentos. Neste caso, a forma mais irracional de fazer este debate é essa mesma: não discutir os conteúdos concretos da política em jogo e mistificar o debate com as supostas, previsíveis e inquestionáveis consequências das livres escolhas dos povos.

Villaverde Cabral começa por fazer um conjunto de perguntas para orientar a sua explicação. Bem sei que fazer perguntas ajuda a desenvolver bons argumentos. Mas só a desonestidade intelectual nos poderia fazer crer que a forma como as perguntas são formuladas, nada dizem sobre as pré-disposições políticas e ideológicas de quem as formula. Se não vejamos:  

“Será que o Syriza sempre vai ganhar as eleições, surgindo como o primeiro partido com aparente credibilidade eleitoral a desafiar abertamente a cura de «austeridade» imposta pela dívida externa?”

 “Será que, ganhando, o Syriza conseguirá fazer governo? E se o conseguir, irá finalmente desafiar a receita da UE? E se o fizer, ganhará a sua aposta ou será confrontada com a iminência da saída do euro? Ou acabará a Grécia por encontrar uma solução de continuidade governamental que lhe permita manter um módico indispensável de contenção da despesa?”

Devolvo as perguntas:

O que leva Villaverde Cabral a considerar que a cura da austeridade foi uma imposição da dívida externa?

Não poderá a cura da austeridade ter sido uma imposição político-ideológica dos governos europeus?

Porque é que é não se explicam as razões do aumento da dívida externa e da dívida pública no geral?

Não poderá ter aumentado a dívida externa e as dívidas públicas no quadro do resgate dos Estados aos sistemas financeiros? Ou o autor assume que a dívida aumentou por culpa dos Estados quem têm serviços públicos e das muitas famílias que recorreram a esse luxo de comprar uma casa para viverem e irem uma semana de férias à praia?

Não poderá a austeridade ser uma estratégia política de acumulação de riqueza e de corte no salário direto e indireto a pretexto do pagamento da dívida?

O que leva Villaverde Cabral a considerar que a austeridade é uma “cura” e não uma “doença”?

O que leva Villaverde Cabral a achar que um governo do Syriza que ganhe eleições só tem uma “aparente credibilidade eleitoral”?

Porque é que Villaverde Cabral considera que se os gregos votarem livremente pelo fim da austeridade têm como possível consequência a saída do euro e se votarem pelos partidos da austeridade essa saída do euro não é igualmente plausível?

Porque é que o fim da austeridade imposta pela UE é colocado como incompatível com a contenção da despesa?

Achará o autor que só se pode cortar despesa com o Estado-social e não com os serviços da dívida, as parcerias público-privadas, os contratos e rendas ruinosas para o Estado, os milionários escritórios de advogados ou no combate à corrupção, ao clientelismo e à falta de transparência?

Mas as mistificações não se ficam por aqui, dizendo o autor que a reestruturação da dívida “já aconteceu na Grécia” e “sem resolver os problemas de fundo da dívida”. É um argumento simplista. Primeiro porque esconde que as políticas da austeridade também não resolveram o problema da dívida em nenhum país da europa e do mundo. E segundo porque o que aconteceu na Grécia não foi uma reestruturação da dívida, mas um abate de dívida com a imposição de um programa ultra-austeritário de destruição de serviços públicos, de mais cortes e de promoção do desemprego. Há mesmo várias formas políticas e económicas de fazer reestruturações. Não vale a pena desqualificar o debate.

No fim do texto, Villaverde Cabral dá a estocada final, bem aproveita pelo Observador para “destaque” do texto:

“E se o Syriza não ganhar ou não conseguir fazer governo? Será a deflação política do Podemos, para não falar dos minis-Podemos portugueses e, quem sabe, se o fim das próprias excentricidades do PS com a sua sistemática denegação de que há um seríssimo problema da despesa pública a resolver em Portugal rapidamente, passando por difícil que seja pelas reformas, a função pública e as empresas estatais.”

O excerto é bem revelador: para Villaverde Cabral é bom que o povo grego não escolha o Syriza porque isso acaba com quaisquer outras esperanças no resto da Europa. Como sociólogo que é, fica-lhe mal dizer isto. Cabral sabe tão bem como nós que as derrotas dos movimentos sociais, populares e políticos não se traduzem sempre na morte das suas redes, esperanças e formas de organização. Às vezes a derrota de um momento político faz desaparecer um campo político. Outras vezes dá força a esse campo político. E outras ainda, faz com que ele se reinvente, procurando respostas novas para problemas novos.

A realidade social e política é mais complexa que as mistificações de Manuel Villaverde Cabral. O seu percurso na investigação desses temas exigiria análises mais depuradas de tanta irracionalidade. Como o próprio diz: “há uma questão inegável: o elemento político e ideológico faz parte quase natural da vocação para as ciências sociais.” Eu acrescentaria apenas que também faz parte natural da vocação dos cientistas sociais.

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