19 janeiro 2015

Charlie Hebdo e as palavras que contam

Passaram quase duas semanas sobre os atentados no Charlie Hebdo. A expressão da solidariedade que se seguiu é um sinal de esperança num tempo de desesperança. E mesmo que a lista de convidados de François Hollande inclua quem tenha transformado a sua presença numa caricatura das suas ações, o peso dos milhões que percorreram as ruas de Paris balança o mundo para o lado certo.

A discussão pública gerada em torno do massacre é também o sinal das contradições deste tempo. Foi assim na viragem do século, é assim agora. Porém, o debate sobre o futuro da Europa escreve-se hoje nas entrelinhas do consenso forçado pela condenação dos atentados. E, neste debate, as palavras contam mesmo.

É evidente que existe uma confusão nos termos do debate. As categorizações de “muçulmano”, “árabe” e “islâmico” (assim indistintamente apresentadas) passaram a ser sinónimo de “terrorista”. De tal forma que os dados hoje divulgados pela Europol – nos quais se conclui que “apenas 2% dos atentados podem ser atribuídos a islâmicos” – foram recebidos com surpresa pela imprensa internacional. Perante esta associação, levantam-se as mais improváveis vozes da direita francesa agitando a bandeira da laicidade.

É certo que o princípio da laicidade foi fundamental para a transformação das instituições modernas em espaços de inclusão. A defesa desta ideia mobiliza amplos setores, porque é hoje consensual que as hierarquias religiosas não têm legitimidade para capturar a organização do Estado. O problema é que, num contexto de fragmentação social, o debate depressa se transforma numa discussão sobre a laicização da sociedade. E, perante este cenário, é fundamental ter firmeza na defesa da liberdade religiosa (o que implica, necessariamente, um recuo do Estado no controlo da vida social).

José Manuel Fernandes, no próprio dia dos atentados, escrevia um artigo em que condenava os crimes contra “todos os que apenas desejam viver numa sociedade aberta, tolerante e plural”. (Tentemos, por favor, abstrair-nos do facto de este hábil defensor da liberdade de expressão ser o mesmo que há poucos meses defendia a censura numa das principais revistas científicas portuguesas.) A palavra “tolerância” será das maiores armadilhas que se pode encontrar num dicionário. Não só porque estabelece uma hierarquização entre quem “tolera” e quem é “tolerado”, mas também porque legitima essa desigualdade com base na aceitação da inferioridade (de valor ou de posição) do “outro”.

O problema de José Manuel Fernandes é que a Europa, ao contrário do Observador, não é um projeto civilizacional baseado nos “princípios fundadores da Civilização Ocidental, derivados da antiguidade greco-romada do Cristianismo e do Iluminismo”. Ou melhor: é também isso, mas é muito mais do que isso.

É essa outra Europa, a dos povos e das culturas, que nos lembra hoje Alexandra Lucas Coelho no excelente artigo que assina no Público. A Europa dos 8372 bósnios muçulmanos assassinados em Srebrenica, perante a tolerante passividade da Civilização Ocidental. Há mais de vinte anos, em 1993, Jean-Luc Godard realizava uma curta-metragem sobre as atrocidades cometidas na Guerra da Bósnia. Assim se pode ouvir, na voz de Godard:


Gente que viveu tão mal, gente que morre tão bem. De Sarajevo a Paris. Gente que a Europa não pode tolerar, porque são parte da própria Europa. Podíamos perguntar a José Manuel Fernandes de que lado está, nos cemitérios improvisados de Mostar e Srebrenica, a tolerância. Podíamos, mas não vale a pena.

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