27 janeiro 2015

Comparações e coligações

Retomando uma questão que me preocupa há bastante tempo.

Tsipras ainda não tinha tomado posse e duas coisas já eram claras: vamos ter muita comparação para fazer, abusiva ou não, e vamos ter muita pedra para partir, no que respeita à escolha do partido ANEL para parceiro de coligação.

I
Sobre o primeiro problema, já se escreveu bastante. Alexandre Afonso escreve aqui sobre um efeito concreto, que pode explicar a razão pela qual o PS e o PSOE parecem apostados em cavalgar a vitória da SYRIZA: a política de cartel não tem sucesso garantido; os processos políticos não são sempre domesticáveis por pressões económicas indistintas; e, por fim, podemos comparar os países do sul da Europa, mas precisamos de ter cuidado com as comparações. O sistema político português tem pouco a ver com o sistema político grego. A cultura política portuguesa tem muito pouco a ver com a cultura política grega. A Espanha não é a Turquia, a não ser que alguém considere Olivença "uma questão" semelhante à do Chipre.

É evidente que podemos identificar um número elevado de semelhanças: de acordo com critérios minimalistas, são democracias liberais consolidadas, partilham a mesma moeda e um conjunto de tratados internacionais, incluindo aqueles que configuram a UE e a UEM. Ambos os países foram ou são alvo de programas de ajustamento estrutural e transferência de rendimento entre o trabalho e o capital. Tudo isto é verdade, mas o comentariado televisivo compara a Grécia a Portugal com a mesma habilidade com que um chimpanzé pinta um Vermeer.



O PS não é o PASOK; o PSD não é a ND; o PCP não é o KKE; o Bloco não é a SYRIZA. Por várias razões. As clivagens determinantes dos sistemas de partidos não são semelhantes e o seu realinhamento manteve-as afastadas. A ciência política portuguesa, com todos os defeitos de que padece, é particularmente forte a este respeito: basta consultar os estudos produzidos no ICS-UL e no ISCTE-IUL, por cientistas políticos como Pedro Magalhães, Catherine Moury, Marina Costa Lobo, André Freire ou Carlos Jalali para recusar generalidades.

Isto não quer dizer que não devamos derivar algumas conclusões dos resultados de ontem. Parece claro que os bipartidarismos não se eternizaram; a Espanha pode, a prazo, ser um exemplo disso, tal como a Irlanda. Paradoxalmente, o sistema político português, com as clivagens do PREC e o processo de institucionalização da democracia, pode ser o menos atreito a mudanças tectónicas. É preciso ter isso em conta. Antes de se dizer que o PCP é a cópia acabada do KKE ou que a SYRIZA é a cópia acabada do Bloco, convém ter em conta algumas variáveis.

A esquerda grega não se define em torno dos mesmos problemas-chave que a esquerda portuguesa; em Portugal, a herança fascista e o papel de absorção do PSD e do CDS, relativamente à oposição institucionalizada ao Estado Novo, tiram espaço a expressões institucionais de um nacionalismo virulento como aquele que pode ser expresso por actores do sistema político grego. Porque o nacionalismo grego tem um conjunto de fontes concretas para justificar os seus contornos defensivos e militaristas: a Turquia, a Macedónia e a Trácia, cujas relações Estado-religião são muito mais complicadas do que a esquerda anti-clerical urbana portuguesa julga ser possível.

 Tsipras será obrigado a lidar com tudo isto: a SYRIZA não é um partido português e os seus quadros de referência são - é inacreditável precisar de escrever isto - manifestamente diferentes dos quadros de referência dos partidos portugueses e dos esquerdistas portugueses. O papel das forças armadas é necessariamente diferente; o papel das igrejas ortodoxas (há mais que uma, embora a grega seja dominante e constitucionalmente prevalecente) é necessariamente diferente do papel da igreja católica em Portugal.

II
Isto serve para enquadrar a escolha do parceiro de coligação. No Facebook, questiona-se a opção de preterir o partido de Stavros Theodorakis, To Potami, em função dos Independentes Gregos. De acordo com quem questiona, diz-se que a SYRIZA já traiu, antecipadamente, o mandato conferido pelos eleitores que foram votar. O ANEL é, afinal, um partido nacionalista, homófobo, anti-semita e anti-secular. Quanto a isto, seria importante manter alguma frieza e pensar que um partido com opções de campanha deste género dificlmente teria deputados no parlamento depois de uma eleição onde a Aurora Dourada também participa. Esses sãos os elementos identitários mais fortes do partido neo-fascista.

Aquilo que parece diferenciar o ANEL não é isso, mas o soberanismo nacionalista. A própria SYRIZA, apesar do seu pendor internacionalista, não deixa de ser uma coligação produzida pela cultura política grega e, portanto, insiste numa retória, em certos momentos, soberanista. A recusa da austeridade tem, em ambos os casos, componentes soberanistas; a SYRIZA, porque é um partido de esquerda, modera esse soberanismo com uma retórica e um pendor programático para a solidariedade internacionalista. O ANEL é um partido de direita cujos deputados ao Parlamento Europeu trabalham em coordenação com os Conservadores e Reformistas. É uma dissidência da ND e do PASOK cuja campanha assentou na retórica nacionalista que apela a algum eleitorado grego. São essas características que fazem desta formação política o único partido cuja assertividade parece garantir, a Tsipras e companhia, uma frente dura para as negociações que se avizinham.

Realpolitik? Certamente. É uma escolha que deve agradar mais a alguns sectores da SYRIZA que a outros; naturalmente, será alvo de críticas fortíssimas por parte de todos os outros partidos, incluindo os parceiros da SYRIZA em Bruxelas. Há quem fale de companhias frequentáveis e menos frequentáveis. Pobre vocabulário e entendimento político o de quem acha que as negociações terão algo de frequentável ou civil. Não terão. O To Potami ocupou o espaço da DIMAR e do europeísmo feliz, que falhou redondamente. É mais frequentável? De um certo ponto de vista, é.

Mas a questão é outra. Quem define os termos dessa frequentabilidade? São os mesmos actores que estruturam o debate de modo a excluir possibilidades concretas. São os mesmos actores que operam uma mobilização do enviesamento e excluem ou incluem temas, tópicos, actores e processos de forma estratégica. O domínio discursivo é um factor determinante deste poder definidor - a segunda face do poder, de acordo com uma longa tradição da ciência política americana. Como é que podemos observar isto? Se o poder é produtivo, reconfigura a identidade dos seus sujeitos - e é por isso que o parceiro júnior da coligação parece ser a única coisa que importa para perceber a direcção estratégica do novo governo grego.

E é por isso que importa redefinir a identidade deste partido e colá-lo à Aurora Dourada - retirará o capital político da SYRIZA e manterá um determinado projecto político em cima da mesa. Só assim é possível definir um partido como o ANEL, claramente conservador, como partido de extrema-direita. Imagino que já tenham lido o programa; as declarações que li não confirmam essa impressão. Mas não é essa, sequer, a questão fundamental. A questão fundamental é saber porque é que, de repente, o parceiro minoritário passou a ser o mais importante na direcção política de um governo.

Talvez este juízo seja uma função da influência do CDS-PP, relativamente à sua significância eleitoral, no governo de coligação em Portugal. Mais uma vez, estaremos a entrar num terreno de comparabilidade limitada. O efeito Portas é infirmado pelo colapso continuado dos parceiros juniores em coligações: os LibDems, no RU, os Verdes, na Irlanda e o FDP, na Alemanha, são exemplos claros disto.

Este juízo é tanto mais bizarro se considerarmos tudo isto em função de um juízo aritmético. A SYRIZA obteve 149 lugares no Parlamento. O ANEL obteve 17. Deste ponto de vista, uma dominação vanguardista do partido minoritário não é apenas improvável, mas impossível. Além disso, há uma vasta literatura, também em ciência política, que nos mostra como os parceiros minoritários em coligações governamentais tendem a ter uma influência muito limitada sobre a direcção geral das políticas públicas e, além disso, tendem a desaparecer ou a entrar em colapso após um ou dois mandatos. Empiricamente, isto tem sido mostrado em vários casos, incluindo aqueles que referi.

Os partidos minoritários têm muita dificuldade em manter uma identidade concreta neste contexto, a não ser que o seu líder seja capaz de manter questões salientes - em termos de agenda - no debate público. Ainda assim, é difícil acreditar que Tsipras aceite declarações anti-semitas da parte de Kammenos; é díficil acreditar que surjam declarações homofóbicas sem retracção instantânea e consequências políticas. Esquecemo-nos demasiadas vezes disto: o partido maioritário pode depender do partido minoritário na generalidade, mas, na condução de políticas públicas, passou a deter mais e melhores recursos.

Nem toda a política pública é resolvida no Parlamento e isso é um dado relevante: em dez ministérios, oito, pelo menos, são SYRIZA e um deles pertence ao representante da Plataforma de Esquerda. Isto significa que a influência dos Gregos Independentes pode ser bastante menos marcada que a da ala mais radicalizada do partido maioritário.

O problema da análise eleitoral pura é este: ignora que a produção de políticas públicas é uma função de várias correlações de forças em vários campos estratégicos, incluindo, mas não exclusivamente, o Estado. Andar para aí a contar deputados e a falar da frequentabilidade de parceiros minoritários é francamente inábil. Em particular quando a correlação de forças, no micro-contexto dos conselhos de ministros e no meso-contexto do Parlamento, será tão desequilibrada.

III
O problema da esquerda europeia não é a confecção de alianças largas e consensos mínimos. É uma direcção estratégica clara, realista e agressiva, sem compromissos com limites discursivos exteriores definidos por um consenso hegemónico neoliberal, produzido e reproduzido em velocidade acelerada a escalas cada vez mais capilares. Os partidos de cartel, ou partidos governamentalizados, não podem convocar os seus quadros para definir uma estratégia clara, realista e agressiva sem correrem o risco de se auto-imolarem: a esquerda centrista é um Sísifo que quis dar o calhau aos seus eleitores e falhou, transformando-se em Cassandra.

Optar por puxar essa esquerda para um nicho desocupado, como parece ser o caso do espaço ideológico em Portugal, pode dar resultado; mas também pode resultar no estilhaçar do PS e no esmagamento dos quadros que optam por essa estratégia debaixo dos escombros da organização. Entretanto, há um partido republicano democrata e não sei quê à espreita. O problema não é, de todo, uma dicotomia sectarismo/cosmopolitismo, mas um problema que se reporta à relação entre os movimentos sociais, às suas formas organizacionais e à concepção primitiva de Estado e políticas públicas que continuamos a manter.

Menos Stephane Hessel e mais Nicos Poulantzas, seria a sugestão. O Estado é um terreno de combate e não uma estrutura de coerção; é um campo estratégico e não uma relação de forças pura. A SYRIZA ganhou porque percebeu isso - e pode vir a ganhar mais se apostar nessa compreensão.

2 comentários:

  1. 'Incluindo' não tem acento, 'juniores' também não, tirando outras asneiras; quanto ao texto, muita parra e pouca uva...

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  2. Obrigado pelas correcções. Talvez possa indicar-me quais as outras asneiras - é a melhor maneira de aprender.

    Quanto ao texto, qual é a parra e qual é a uva?

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