15 janeiro 2015

Esqueçam tudo o que escrevi



Há, na história política brasileira, uma lenda urbana que tem como protagonista o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Diz quem a ouviu que FHC terá proferido uma frase lancinante numa reunião com empresários. Corria o ano de 1993 e FHC preparava a sua candidatura pelo Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB) às eleições presidenciais do ano seguinte. Questionado sobre a fidelidade às suas teses sociológicas, escritas na tradição da crítica ao subdesenvolvimento e dependência económica, FHC atirou com um desastrado "esqueçam tudo o eu escrevi". Estava lançada a maldição. Ao longo dos seus dois mandatos, o ex-presidente renegou a paternidade da frase por diversas ocasiões. Mas a cada medida governamental que se inscrevia no cânone neoliberal, mais a frase se ajustava ao destino daquele que chegou a ser considerado o porta-voz da terceira via na América Latina.

Em Portugal, o poder a quem o exerce, a teoria a quem o contradiz, parece ser a regra. Poucos os que governam respeitando o seu pensamento de cátedra anterior. Mas as expectativas, só as perde quem as teve. Eduardo Vítor Rodrigues (EVR) é um sociólogo português com vasta produção no campo das desigualdades e exclusões sociais. Combateu desde o princípio a longa cruzada de Paulo Portas no ataque aos beneficiários do Rendimento Mínimo, hoje designado de RSI. Membro do Partido Socialista, nunca abandonou a produção do conhecimento sociológico em favor do que chama de "pensamento estratégico territorial" das políticas públicas.

EVR assumiu, em 2013, a presidência da CM de Gaia, uma das mais endividadas do país e prisioneira de uma forte rede clientelista montada por Luís Filipe Menezes. Não se trata aqui de fazer juízo sobre o seu tempo de mandato, mas de indagar sobre os contornos de um pequeno episódio. No dia 12 de janeiro, EVR inaugurou, na qualidade de Presidente da Câmara, o hospital privado de Gaia, propriedade do grupo Trofa Saúde. No seu discurso, EVR afirmou que "Este investimento tem um racional de resposta num serviço público, numa demonstração de dedicação à causa da saúde, com o objetivo de rentabilizar o serviço e criar novos postos de trabalho" acrescentando que "o conceito de serviço público pode e deve ser cumprido por quem se disponibiliza a cumprir serviço público e não por quem diz que é público".

Um discurso de circunstância, dirão alguns. Será, mas encerra uma das principais questões civilizacionais que enfrentamos nesta Europa turvada pela austeridade. Cumpre o serviço público aquele que é público - na aceção clássica, o Estado - ou aquele que se disponibiliza a fazê-lo? 

Deixemos até de lado a sombria história das PPP, do financiamento aos colégios privados e outras parangonas que desmascararam tanto a estratégia neoliberal nos últimos anos. O que é a história da saúda privada em Portugal senão a paulatina transferência de pacientes do sector público através dum sector de planos privados de saúde que já abarcam 25% da população? E engana-se quem pensa que falamos apenas de quotas de mercado e tesourarias. A maioria deste pacientes situa-se no que há falta de melhor podemos chamar de "classe média", um estrato de pessoas que pelo nível de rendimento consegue aceder ao serviço privado de saúde (embora ainda muitos o consigam através da empresa onde trabalham).

 O que destinge este cenário, por exemplo, do Brasil de FHC? É que em Portugal, a noção de um SNS universal e gratuito foi erguida com o apoio da esmagadora maioria da população, que acede ao SNS em igualdade de circunstâncias e reconhece o seu valor. Mas quando, na era da austeridade, se conjuga o apoio público ao sector privado de saúde (PPP) a uma degradação e encarecimento do serviço (taxas moderadoras) eis que se parte o apoio do SNS.

 Hoje, a diferença entre uma ida às urgências num Hospital Público e a um Hospital da rede que EVR inaugurou em Gaia, pode ser de apenas 10 euros. Muitos pacientes aderem, assim, à tese de EVR, e recorrem ao privado que diz cumprir um serviço público.

Não é a qualidade ou o custo que definem um serviço público, mas a própria natureza pública que o retira do circuito mercantilizado, como tão bem demonstraram Esping-Andersen e Amartya Sen.

Mas para quê tanta paráfrase, se é o próprio EVR, sociólogo, que o explicou: "Os serviços públicos começam a ser alvo de uma desestruturação progressiva e de um desinvestimento gradual, legitimados pela ideologia neoliberal da crise e da ineficiência. Curiosa metamorfose: o desinvestimento público passa a ser consequência dos (produtiva e economicamente) ineficientes serviços públicos, quando normalmente fora o primeiro que determinara os insucessos do segundo. Mais: a razão do desmantelamento dos serviços públicos é, ironicamente, o instrumento da sua avaliação. E pior ainda: emergem instrumentos ideológicos de fragilização de Estado e de simultânea legitimação de um mercado que parece tão promissor como segmentado."

E lembrando bem, a frase correta do FHC, segundo o próprio, foi "A gente escreve tanta coisa, então é cobrado pelo que escreveu." 

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