04 fevereiro 2015

E da revolta se fez música. Crescer ao som dos 90

Não há revolta que não seja juvenil. E não se descrevem insurreições sem que se contem as estórias singulares que nelas encontram voz e enquadramento. Crescer nos anos 90 implicou procurar o som das suas insurgências, o mesmo que hoje transporta e documenta a afirmação alternativa de um tempo cada vez mais longínquo.

Não havia net nem tv por cabo. Havia a promessa desconfiada de um “mercado comum”, havia um primeiro-ministro prepotente com uma grande franja de apoio popular… E havia uma juventude a braços com um apertadíssimo numerus clausus no acesso ao ensino superior elitizado, com aumentos de propinas, numa escola pública apenas parcialmente construída pela jovem democracia nacional. Havia o serviço militar obrigatório, expressão visível de um desígnio patriótico que os que gritavam “nem armas nem generais” recusavam, com veemência minoritária. Havia o flagelo da heroína, a lei das ruas e a desigualdade social, com a cultura popular e as tribos urbanas a tentarem formular da melhor maneira quotidianos individuais e colectivos sem honras de púlpito. E houve o Blitz, ainda jornal, ou o Pop Off, programa de rock em português com bandas e formas de expressão quase totalmente arredadas dos circuitos convencionais de divulgação musical. O punk, nesta altura, ia crescendo para fora da rua e do bairro, sem que tivesse perdido a noção de rua e de bairro que era toda a sua genuinidade.

Mais do que apenas música, o punk entra na história pessoal e colectiva de insurreições quotidianas. Opto por mostrá-las sob o modo de Raiva Ironia, de Raiva Energia e de Raiva Acusação. Três dimensões parciais, individuais, de se testemunhar por uma cultura popular que, se hoje quer construir ruas sem raiva, soube outrora assumir que não havia raiva sem rua.


 Raiva-ironia e os Peste & Sida
A abertura de “Peste & Sida é que é” poderia ser encarada pelos mais distraídos como um apelo entusiasmado, uma adesão ao “desafio de 92” cavaquista. Mas era antes de mais o exprimir irónico de um tempo inoculado pela esperança dos dinheiros europeus e dos amanhãs que cantam do mercado livre, no sarcasmo rasgado do hardcore. Para se entender, tinha que se ouvir a exclamação com que o público substituía, nas actuações ao vivo, o refrão “ao trabalho!”. O mais eloquente vernáculo, encorajado com gosto pelo autêntico performer que era, em palco, João San-Payo, baixista, vocalista e letrista mordaz:

- Raiva-energia e os Censurados
Inútil dizer o que já se sabe. Mesmo quem nunca pôde ver em palco o malogrado João Ribas reconhece, nos vídeos, o talento de um frontman, na raiva implacável de atitude punk e no flagelar de um sistema vigilante, persecutório e sem saída visível. Tudo nele era genuíno, na raiva-energia que era todo o magnetismo dos Censurados, para quem “a morte espanta/ a vida encanta/ queremos revolução”. O primeiro videoclip dos censurados trazia-nos, desta maneira, a rotina cinzenta de um trabalhador sem perspectivas:

- Raiva-acusação. Ou “Tu, aí”…
Sobre a “narrativa política” dos Xutos, lembro a reflexão mais completa e sistematizada deFernando Ramalho. O intuito aqui é mais modesto e pessoal. Da rua ao mainstream vai apenas um passo. A vulgarização plastificada dos concertos de Queima, o merchandising absurdo e quase caricatural, aplacam uma raiva-acusação que fez história, cultivada com impacto devido desde o mítico RRV, de que o JoãoMineiro já nos falou há uns tempos atrás. Essa raiva-acusação persistiu ainda, agressiva e sem freios, na letra e voz de “tu aí”, mas também no ambiente urbano e “no future” deste vídeo que aqui coloco:


Comecei por dizer que toda a insurreição é juvenil. Se o for suficientemente, a sua genuinidade permite-lhe um poder de reinvenção quase permanente, na voz, no acorde, no berro e no queixume, com um fulgor renovado que não sabe ser inconsequente. Ele está sempre pronto a dizer ao que vem e, quando menos se espera, aparece na praça, na rua ou no palco sob forma de raiva inquieta, intransigente, reivindicativa. Politiza-se quando é preciso, desinstitui-se para melhor deflagrar, mas é sempre tão imprevisível quanto persistente. Surge cedo, como escreveu Sophia, na procura pelo “emergir de um mundo que apodrece”. E sobrevive, em estado de latência, nos corpos que animou, à espera de uma oportunidade de acontecer novamente. Tão juvenil como outrora. 

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