Não há revolta que não
seja juvenil. E não se descrevem insurreições sem que se contem as estórias
singulares que nelas encontram voz e enquadramento. Crescer nos anos 90
implicou procurar o som das suas insurgências, o mesmo que hoje transporta e
documenta a afirmação alternativa de um tempo cada vez mais longínquo.
Não havia net nem tv por
cabo. Havia a promessa desconfiada de um “mercado comum”, havia um
primeiro-ministro prepotente com uma grande franja de apoio popular… E havia
uma juventude a braços com um apertadíssimo numerus
clausus no acesso ao ensino superior elitizado, com aumentos de propinas,
numa escola pública apenas parcialmente construída pela jovem democracia
nacional. Havia o serviço militar obrigatório, expressão visível de um desígnio
patriótico que os que gritavam “nem armas nem generais” recusavam, com
veemência minoritária. Havia o flagelo da heroína, a lei das ruas e a
desigualdade social, com a cultura popular e as tribos urbanas a tentarem
formular da melhor maneira quotidianos individuais e colectivos sem honras de
púlpito. E houve o Blitz, ainda jornal, ou o Pop Off, programa de rock em
português com bandas e formas de expressão quase totalmente arredadas dos
circuitos convencionais de divulgação musical. O punk, nesta altura, ia
crescendo para fora da rua e do bairro, sem que tivesse perdido a noção de rua
e de bairro que era toda a sua genuinidade.
Mais do que apenas
música, o punk entra na história pessoal e colectiva de insurreições
quotidianas. Opto por mostrá-las sob o modo de Raiva Ironia, de Raiva Energia e
de Raiva Acusação. Três dimensões parciais, individuais, de se testemunhar por
uma cultura popular que, se hoje quer construir ruas sem raiva, soube outrora
assumir que não havia raiva sem rua.
- Raiva-ironia
e os Peste & Sida
A abertura de “Peste
& Sida é que é” poderia ser encarada pelos mais distraídos como um apelo
entusiasmado, uma adesão ao “desafio de 92” cavaquista. Mas era antes de mais o
exprimir irónico de um tempo inoculado pela esperança dos dinheiros europeus e
dos amanhãs que cantam do mercado livre, no sarcasmo rasgado do hardcore. Para
se entender, tinha que se ouvir a exclamação com que o público substituía, nas
actuações ao vivo, o refrão “ao trabalho!”. O mais eloquente vernáculo,
encorajado com gosto pelo autêntico performer que era, em palco, João San-Payo,
baixista, vocalista e letrista mordaz:
- Raiva-energia
e os Censurados
Inútil dizer o que já se
sabe. Mesmo quem nunca pôde ver em palco o malogrado João Ribas reconhece, nos
vídeos, o talento de um frontman, na raiva implacável de atitude punk e no
flagelar de um sistema vigilante, persecutório e sem saída visível. Tudo nele
era genuíno, na raiva-energia que era todo o magnetismo dos Censurados, para
quem “a morte espanta/ a vida encanta/ queremos revolução”. O primeiro
videoclip dos censurados trazia-nos, desta maneira, a rotina cinzenta de um
trabalhador sem perspectivas:
- Raiva-acusação.
Ou “Tu, aí”…
Sobre a “narrativa
política” dos Xutos, lembro a reflexão mais completa e sistematizada deFernando Ramalho. O intuito aqui é mais modesto e pessoal. Da rua ao mainstream
vai apenas um passo. A vulgarização plastificada dos concertos de Queima, o
merchandising absurdo e quase caricatural, aplacam uma raiva-acusação que fez
história, cultivada com impacto devido desde o mítico RRV, de que o JoãoMineiro já nos falou há uns tempos atrás. Essa raiva-acusação persistiu ainda,
agressiva e sem freios, na letra e voz de “tu aí”, mas também no ambiente
urbano e “no future” deste vídeo que aqui coloco:
Comecei por dizer que
toda a insurreição é juvenil. Se o for suficientemente, a sua genuinidade
permite-lhe um poder de reinvenção quase permanente, na voz, no acorde, no
berro e no queixume, com um fulgor renovado que não sabe ser inconsequente. Ele
está sempre pronto a dizer ao que vem e, quando menos se espera, aparece na
praça, na rua ou no palco sob forma de raiva inquieta, intransigente,
reivindicativa. Politiza-se quando é preciso, desinstitui-se para melhor deflagrar,
mas é sempre tão imprevisível quanto persistente. Surge cedo, como escreveu
Sophia, na procura pelo “emergir de um mundo que apodrece”. E sobrevive, em
estado de latência, nos corpos que animou, à espera de uma oportunidade de
acontecer novamente. Tão juvenil como outrora.
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