23 março 2015

Alexandra Lucas Coelho: "Um pesadelo para acordar"


1. Enfim bons motivos para celebrar as eleições israelitas: acabou o blablabla sobre o processo de paz, o futuro estado palestiniano, o empenho do governo de Israel, a única democracia do Médio Oriente. A vitória de Netanyahu é o fim da sonsice após décadas de banho-maria. Ele disse, finalmente, que é contra um estado palestiniano; apelou aos “judeus de direita” que corressem a votar contra o “risco” da “quantidade de árabes [israelitas]” habilitados a votar; e um seu ministro sugeriu decapitar os árabes israelitas “desleais” ao estado. Com os dentes assim para fora, fica difícil para a Europa e sobretudo para os Estados Unidos continuar a fingir que há aqui um processo de paz, um futuro estado, um empenho, uma democracia. Não por acaso Obama ainda não ligara a Netanyahu três dias depois das eleições (data em que escrevo), e não por acaso o que entretanto corre é que a Casa Branca pondera, finalmente, apoiar a resolução das Nações Unidas sobre o reconhecimento de dois estados nas fronteiras de 1967. Isto, quando Israel conseguiu manter o status quo durante tempo qb para parecer irrealista voltar às fronteiras de 1967. Se Netanyahu deixa de fazer de sonso é porque já não precisa.

2.As palavras foram frontais. Avigdor Lieberman, ministro israelita dos Negócios Estrangeiros: “Quanto àqueles [árabes israelitas] que estão contra nós, nada a fazer. Temos de pegar num machado e cortar-lhes a cabeça.” E Benjamin Netanyahu, depois de confirmar a um entrevistador que nunca criará um estado palestiniano: “Penso que alguém que hoje estabeleça um estado palestiniano e evacue territórios estará a dar campo ao Islão radical para atacar Israel.” Os optimistas dirão que Netanyahu ganhou apesar disto, os pessimistas dirão que ganhou por causa disto, mas que não haja qualquer distância relevante entre uns e outros só expõe o vazio de décadas de negociações, tapado pelo blablabla. A estratégia, frontal, de Netanyahu é a da anti-evacuação: continuar a colonizar os territórios palestinianos, tornando cada vez mais impossível qualquer estado palestiniano nas fronteiras de 1967. E o resultado é que, geograficamente, a Palestina é um trapo roto, roído por mil traças, como qualquer pessoa pode verificar apenas indo lá, mesmo sem poder ir a Gaza, o que qualquer pessoa não pode, mesmo.

3. Apenas indo lá faz toda a diferença. Foi o que Joana Villaverde aprendeu entre 2014 e 2015, em duas temporadas nos territórios palestinianos ocupados da Cisjordânia. Enquanto Lieberman e Netanyahu arregaçavam os dentes em campanha, ela voltava de Jericó e Jaffa para finalizar os preparativos da sua exposição “Animal’s Nightmare”, que inaugura a 4 de Abril, numa cavalariça de Aviz, Alentejo. Joana acha que passou anos a falar de si no que ia criando, e que isso mudou, primeiro numa estadia de TRABALHOem Nova Iorque, quando pela primeira vez se viu a sós, sem filhas, família, amigos próximos, depois quando se mudou parcialmente para Aviz. A Palestina, como tema de resistência, apareceu-lhe entre Nova Iorque e as oliveiras alentejanas, foi lendo, vendo, ouvindo, fixou-se num livro de Suad Amiry, em particular no capítulo “Animal’s Nightmare”, que lhe deu imagens de animais a baterem contra o muro que cerca os territórios palestinianos, por exemplo gazelas, como as que ela também via no Alentejo. Então em 2014 foi à Cisjordânia, e tudo mudou. “Chegar lá é ver que a coisa afinal não é assim tão longe. Aprendi que só há o outro quando é desconhecido.” Enquanto é desconhecido.

4.Antes de ir à Palestina, a ideia inicial de Joana para a exposição era pôr as peças todas dentro de uma jaula, algo que a fizesse sentir-se mal. Indo lá percebeu que o ponto não era esse, o que ela sentia. A exposição não seria sobre ela, mas para o que as pessoas poderiam ver ou sentir. Então vai ter, na cavalariça de Aviz, um amontoado de pás de lata pintadas que não se conseguirão ver bem uma a uma, nem exactamente o que são, todas juntas. “O que quero dizer é que há um sítio muito bonito que as pessoas não vêem, e que só indo lá é que o outro desaparece, e passamos todos a ser a humanidade.” Custa-lhe sempre que alguém diz que devia vender as pás como peças individuais, vê-as como parte de um todo.

5.Uma das coisas que a ida à Palestina lhe deu foi a ideia de que a solução mais justa será “um único estado, democrático, em que os cidadãos são tratados todos da mesma forma”. Não dois estados, Israel e Palestina, porque “isso é estar a gozar com as pessoas”, pensando nos colonatos por todo o território onde quem tem o poder final é sempre Israel.

6.O artista de rua Bansky, que há anos foi um dos primeiros a pintar o muro nos territórios palestinianos, voltou recentemente a Gaza e fez um vídeo que acaba com esta frase: “Se lavarmos as mãos do conflito entre os poderosos e os sem poder alinhamos com os poderosos, não permanecemos neutrais.”

7. Uma arte de resistência, é assim que Joana vê o que está a fazer. Isso passa por tomar decisões, como dificultar a vida de quem tem o poder, boicotando-o. “Se o Museu de Telavive agora me convidassse para fazer algo, eu diria que não, nem pensar. Não quero ter relação com um estado que ocupa outro e é racista, por mais que as pessoas que me convidassem fossem maravilhosas. Para resistir a um estado racista e anti-democrata há sempre pessoas maravilhosas que sofrem, há boicotes. Na África do Sul também foi assim.”

8.Idealmente, diz Joana, essa resistência começaria nos judeus israelitas. A vitória de Netanyahu não mostra que essa resistência esteja mais forte, pelo contrário, mas que então sirva para acordar cá fora. Nunca foi tão difícil alguém dizer que não sabia.

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