23 março 2015

As cabras


No início do mês de Março, a Associação Académica da Beira Interior (AAUBI) lançou um vídeo promocional da sua Semana Académica, onde usam 42 segundos para mostrar uma cabra junto ao pavilhão dos concertos (ANIL), à qual se juntam 5 mulheres, de calções curtos e sem camisola, com garrafas de bebidas alcoólicas na mão e com o deprimente slogan: “Apanha a tua”. Acreditem que o vídeo consegue ser pior que a descrição.
Pouco tempo depois de ter tido a infelicidade de me ter cruzado com o vídeo, comentei publicamente que “quem acha que quanto mais as gerações avançam, mais as sociedades evoluem, ainda não deve ter visto a barbaridade e a misoginia deste vídeo promocional da Semana Académica da Universidade da Beira Interior”. O comentário casou polémica e um dos autores do vídeo dirigiu-se diretamente a mim com a elevação típica de quem está pouco habituado à crítica: “Apresento-te o senhor humor (…) A palavra misógino está mesmo na moda, não está? Mas já usámos mesmo nudez, masculina, gostaste mais desse?”. Como o conteúdo e a forma da resposta mostraram tamanha consistência e seriedade, abandonei o debate na rede social. A mesma pessoa enviou-me uma mensagem a desenvolver mais a sua argumentação. Cito, ipsis verbis: “… um video promocional nao obedece ao policamente correcto. Mas sim a um target. Ao mercado. E neste caso o mercado é feito de miúdas bebedas, com decotes grandes, que cravam shots na noite e um beijo por uma passa num charro. E o video resulta porque isso existe. Pelas várias leituras da palavra Cabra. E olha à tua volta. Tens amigas amigas assim. E amigos.”. Achei a argumentação tão emocionante, e vi tanta gente a defender o vídeo como se fosse a sua própria vida, que não poderia fazer a desfeita de responder ao debate.
O vídeo da AAUBI procura utilizar mediaticamente duas representações absolutamente idiotas: há mulheres que têm determinado tipo de práticas e comportamentos que fazem delas umas cabras; nas noites da Semana Académica, pelas seis da manhã, podes encontrar muitas destas cabras disponíveis para ti.

Comecemos pela primeira: que cabras são estas que o vídeo diz que uma pessoa pode “apanhar” nas noites da Semana Académica? Nas palavras de um dos autores do vídeo são “miúdas bêbadas, com decotes grandes, que cravam shots na noite e um beijo por uma passa num charro”. A outra leitura que se fez nas redes sociais foi a de que as cabras são jovens universitárias bêbadas que nas festas estão disponíveis para serem engatadas. No essencial, a representação da mulher como cabra é pura e simplesmente a representação de uma mulher que invade com autonomia e sem dependências masculinas o espaço público da noite académica e à qual alguns homens associam traços de infâmia e falta de honra porque, aparentemente, vivem sem problemas em assumir e viver a sua sexualidade. Lamento desiludir as almas masculinas mais excitadas mas as mulheres não têm de se vestir, de agir e de beber a pensar nos vossos pénis.
Esta mulher-cabra é sobretudo um tipo ideal de sentido Weberiano e um elemento de alteridade. Isto é, pode-se classificar este tipo de mulher, a cabra, apenas na exata medida em que se lhe pode opôr outros tipos diferentes de mulher. Neste caso, existem cabras na exata medida em que a elas se opõe o tipo-ideal de mulher que é dócil e sensível, madura e ponderada, que não pede bebidas nem passas de charros a outros homens. De preferência, essa mulher deve ir para a festa acompanhada pelo namorado.
Mas o que é mais violento no vídeo não é apenas a completa absorção acrítica e irracional de ideias estereotipadas, ajudando a reproduzi-las na sociedade. O que é escandaloso para uma pessoa que preze o mínimo que seja a liberdade, é o slogan associado ao vídeo: “apanha a tua”. Não é apenas a ideia de que há mulheres que podem ser alvos de depreciação pelas bebidas que bebem, pelas roupas que vestem ou pelas pessoas com quem dormem. A ideia é ainda a de que um homem pode apanhar uma destas mulheres na noite, como se elas fossem objetos desintegrados de vontade e sob total ausência de livre-arbítrio. A ideia é a de que estas mulheres estão na festa àquela hora para serem apanhadas. A ideia é a de que estas mulheres só existem porque existe um predador sexual pronto para as caçar. Esta ideia é só desprezível.
Reservo este final para responder aos dois argumentos mais usados contra a crítica do vídeo. O primeiro é o de que o humor não pode ser censurado. Obedecendo ao mercado, o humor deve ter total liberdade. O segundo é o de que as mulheres do vídeo não foram obrigadas a participar. Quanto ao primeiro argumento é simples. Apesar de não achar que aquele é um vídeo humorístico, considero que a liberdade que o humor deve ter só pode existir se houver também o direito a que esse humor possa ser alvo da crítica por quem entender fazê-lo. Quanto ao segundo é ainda mais simples. O facto das mulheres que participaram no vídeo o terem feito voluntariamente não reduz em nada a crítica do vídeo. A crítica é ao que ele representa e não a quem nele participa, muito menos ao que se tem vestido.
No humor, como na vida, há sempre várias escolhas que se podem fazer. Quem escolheu fazer este vídeo desta forma optou por usar os mais básicos e hegemónicos estereótipos como ferramenta promocional. Foi uma escolha. Haveria outras.

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