06 junho 2015

Portugal na era da austeridade e os desafios à esquerda

*Artigo escrito a pedido da revista Viento Sur. Aqui fica, em português.



Há cinco anos, o ex-primeiro-ministro José Sócrates anunciava ao país o primeiro Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC I). A era da austeridade em Portugal começava com um pacto de regime suportado pelo partido no governo (Partido Socialista) e o partido da alternância política (Partido Social Democrata). Deste acordo resultou, um pouco mais tarde, a vinda da troika (FMI, BCE, CE), que durante três anos guiou as escolhas do novo governo das direitas. De seguida tratamos de algumas das maiores transformações económicas e sociais ocorridas neste período, assim como dos desafios da esquerda portuguesa no enfrentamento ao campo austeritário.


1. O governo das direitas e a transformação do regime

A conhecida crise das dívidas soberanas do sul da Europa, cujas causas foram já amplamente assinaladas pelo pensamento económico crítico[1], atingiu Portugal de forma pungente, expondo as contradições do atraso económico e alterando as relações de dominação em três grandes domínios: a distribuição de rendimentos; o papel do Estado na economia; as estruturas de uma burguesia débil e rentista.

No que diz respeito à política de rendimentos, o programa da troika obedeceu a uma estratégia de transferência do factor trabalho para o factor capital. Tal como assinalado pelo Observatório sobre Crises e Alternativas[2], desde a implementação dos programas de austeridade, essa transferência totalizou cerca de 2 mil milhões de euros, assente, sobretudo, na intensificação da extração de mais-valia absoluta – aumento do horário de trabalho, eliminação de feriados, degradação salarial generalizada. A destruição de 400 mil postos de trabalho, que elevou o desemprego real a uma taxa de 21%, resultou numa redução histórica do peso dos salários no PIB nacional, situando-se hoje nos 43%. A tendência de precarização laboral inerente a este processo foi alavancada, por um lado, pela destruição da contratação coletiva, que desde 2008 diminuiu de 37% de trabalhadores abrangidos para 5%, e por outro, através do enorme crescimento dos vínculos instáveis. A economia portuguesa é hoje movida por uma força de trabalho que, na sua maioria, transita entre a precariedade laboral e o desemprego.

Esta mecânica de transferência de rendimentos, num país em que as 100 maiores fortunas totalizam uma propriedade financeira equivalente a 15% do PIB e onde os 20% mais ricos da população concentram 42,2% da riqueza, intensificou as lógicas de desigualdade, com 30% de novos milionários a surgirem nos últimos dois anos de crise. O saque fiscal, por via do aumento do IVA, e a sanha do governo em reduzir a contribuição patronal para a Segurança Social e o imposto sobre o rendimento das empresas, completam o quadro desta transferência de rendimentos suportada pelas políticas de austeridade.

Neste cenário, o papel do Estado na economia tem sofrido transformações profundas, com efeitos devastadores na vida de quem mais sofre com a crise. Do lado do emprego, governo e troika assumiram a continuidade do modelo das chamadas “políticas de emprego”, que consistem na ocupação e gestão dos desempregados em cursos de formação e, numa parcela menor, no financiamento público às empresas através dos programas de estágios precários. A isto o governo das direitas juntou o seu cunho ideológico, produzindo um discurso de culpabilização dos desempregados (que na sua grande maioria não têm acesso a qualquer tipo de apoio social) com o alargamento dos programas de trabalho compulsivo para os beneficiários do Rendimento Social de Inserção (Rendimento Básico)[3].

Os apoios sociais foram, a par com os serviços básicos de saúde e educação, os alvos preferenciais nos cortes orçamentais. Em praticamente todas as matérias, do subsídio de desemprego ao abono de família, passando pelo apoio à habitação e bens de primeira necessidade, diminuíram drasticamente o número de beneficiários e o valor do apoio. Este vazio foi oportunamente ocupado, com a promoção declarada do governo, pelas chamadas instituições particulares de solidariedade social (IPSS), na sua maioria sob a égide da igreja católica. O Estado, atado pela austeridade à impossibilidade de investimento e promotor da destruição do emprego público, é o mesmo que se transformou numa máquina perversa de gestão da crise.

Todavia, foi nos processos de privatização que o papel do Estado mais se alterou na sua ligação intrínseca aos grandes grupos económicos. A onda privatizadora em Portugal, é preciso dizê-lo, iniciou-se muito antes da crise presente, mas as vias abertas pela troika revelam um resvalar significativo da posição ocupada pelo país no contexto europeu e um impacto tremendo nas redes de dominação da burguesia nacional. A atual fase de privatizações corresponde a uma agenda determinada em grande medida pelo capital financeiro do centro da Europa, credor dos bancos portugueses e cujos interesses são interpretados pela estratégia da troika, através da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu. Em termos de disputa da propriedade, os grupos económicos nacionais são atores menos que secundários. E a própria receita das privatizações é escoada do país por dois canais: de forma imediata, pelo pagamento da dívida; no longo prazo, pela perda permanente pelo Estado, a favor de grupos estrangeiros, de rendas monopolísticas (aeroportos, correios) e de outros recursos importantes, não só pela sua rentabilidade como pela sua presença internacional (eletricidade, transportes aéreos)[4].

Toda a narrativa de manutenção dos centros de decisão em “mãos nacionais”, que caracterizou a entrega dos sectores estratégicos à burguesia nacional durante as últimas duas décadas, esfumou-se perante a agonia financeira dos grandes grupos. Os laços com o capital angolano, o apoio à austeridade como mecânica da destruição dos salários e dos serviços públicos, assim como a adesão aos novos ditames do poder europeu, formam a base sobre a qual se sustenta a nova estratégia de dominação.


2. A falsa saída da troika: mais 20 anos de austeridade?

Foi o próprio Presidente da República e histórico líder da direita, Cavaco Silva, a afirmá-lo. A economia portuguesa teria de apresentar um crescimento anual de 4% e excedentes orçamentais durante mais 20 anos de forma a atingir as metas ditadas pelo Tratado Orçamental. A linguagem tecnocrática, característica deste governante que há três décadas domina a política portuguesa, encobre a crua mensagem: a austeridade veio para ficar, bem para lá da saída oficial da troika. Por outras palavras, o problema da dívida continua a ser o centro da política em Portugal.

As projeções mais otimistas, partilhadas pelo próprio centro político, indicam que a economia portuguesa poderia atingir em 2019, em matéria de emprego e investimento, apenas os níveis de 2008. Uma década perdida na redoma da austeridade permanente. Como pano de fundo deste atraso, está a insustentabilidade da dívida, que já ultrapassou os 130% do PIB. A saída da troika, anunciada festivamente pela direita como um prémio dos anos de sacrifício, não resultou na resolução das debilidades e incapacidades da economia portuguesa. Portugal continua amarrado à usura da dívida, que já supera, só em pagamento de juros, todo o orçamento anual do Serviço Nacional de Saúde. Por isso, um dos momentos de maior isolamento do Governo de Passos Coelho e Paulo Portas decorreu da publicação de uma manifesto público (Manifesto dos 74) em março de 2014, assinado por economistas e dirigentes da esquerda e da direita, exigindo a renegociação da parcela da dívida acima de 60% do PIB. Iniciativa depois enfraquecida pela recusa do Partido Socialista em assumir uma agenda clara de renegociação da dívida.

Perceber a falsa saída da troika e do seu programa, entretanto transmutado em Tratado Orçamental, passa, todavia, por não escamotear as diferenças políticas que a nova fase impõe. A direita tem usado, com algum sucesso, a libertação do constrangimento troikista como impulso para as eleições legislativa que terão lugar no final de 2015. O facto da direção que emanou da luta intestina no PS prometer apenas uma dose mais amena e “inteligente” de austeridade já diz muito sobre o leque de escolhas reais. A solidez do centro político em Portugal, abalado na crise de julho de 2013, quando o líder do parceiro de coligação à direita, o CDS-PP, pediu a demissão para logo ser obrigado a recuar, obrigou estes partidos a alguns ajustes táticos.

PSD e CDS-PP pela primeira vez em trinta anos apresentar-se-ão coligados às eleições legislativas, incapazes de se dissociarem da política de austeridade que os irmanou no poder, depois de o terem feito nas últimas eleições europeias, perdendo 500 mil votos (de 40% em 2009 para 27% em 2014). Quanto ao PS, que por pouco não integrou, em 2013, o governo de unidade nacional proposto por Cavaco e assistiu à prisão do seu ex-líder, José Sócrates, acusado de corrupção e branqueamento de capitais, teve de ajustar as velas. A nova liderança de António Costa, ex-ministro de Sócrates, propôs-se a dar um impulso ao PS como partido de oposição, mas mesmo o facto de liderar as sondagens (com valores à volta dos 35%) não antecipa uma alternativa capaz de constituir uma maioria parlamentar. Este PS segue hoje os primeiros passos de François Hollande, prometendo batalhar na Europa por um alívio da austeridade ao mesmo tempo em que apresenta um programa vincadamente liberal nas matérias económicas.

A sintonia deste centro político nos anos que se seguem passará sempre pelo albergar do Tratado Orçamental às restrições no investimento, na lealdade ao pagamento da dívida e à submissão de características protocoloniais ao poder da burguesia alemã que comanda a Europa. O processo em andamento da privatização da TAP (transportadora área), em que o Governo defende a alienação total da companhia, ao que o PS contrapõe a venda de apenas 49%, é um bom exemplo desta dança do poder que, ao contrário dos outros países do sul da Europa, não perdeu a capacidade de construir consensos de regime.


3. Mobilizações, respostas sociais e os desafios à esquerda

Quase todas as tentativas de mobilização unitária e popular contra o governo e a troika falharam nos seus objetivos. Os sectores de resistência e os movimentos articulados atravessam um período de grande refluxo desde a crise de governação, em julho de 2013. Recordemos que esse foi o momento culminante de um ano e meio de grandes mobilizações, com duas greves gerais bem conseguidas e as enchentes populares das duas manifestações do “Que se lixe a troika”, obrigando o governo a um dos poucos recuos realizados nestes quatro anos (queda da proposta de descida da contribuição patronal para a segurança social). A reunificação do campo austeritário à direita impôs, desde então, dificuldades a estes movimentos e empurrou os sindicatos para uma posição defensiva, incapazes de apresentar a queda do governo como uma possibilidade real e com muita dificuldade em traduzir o descontentamento em batalhas setoriais contra a austeridade.

Parte desta insuficiência deve-se a condições muito objetivas, como a perda de mais de 300 mil jovens para a emigração, o isolamento de mais de 1 milhão e 200 mil desempregados e a grande carga exercida sobre a função pública. Não obstante alguns movimentos terem conseguido pequenas vitórias ou sinais de organização coletiva, como os trabalhadores precários que se mobilizaram em torno de uma Iniciativa Legislativa Popular contra a precariedade, os reformados que deram corpo à combativa APRE (associação de pensionistas), ou os trabalhadores dos transportes que levaram avante algumas greves aguerridas, em Portugal nenhum movimento conseguiu traduzir essa resistência num novo sujeito político ou sequer num alento continuado aos partidos à esquerda.

Esta paralisia social teve consequências dramáticas para o campo da esquerda política. O Bloco de Esquerda, partido que mais sofreu eleitoralmente em 2011 por se ter oposto frontalmente à entrada da troika num período de grande incerteza e medo social, sentimento inteligentemente manobrado pela direita, recuperou parte da sua combatividade enquanto enfrentava um problema de coesão na sua direção e a saída de alguns dirigentes, atingindo os 4,6% dos votos nas eleições europeias. Após a saída de Francisco Louçã da liderança, o Bloco ensaiou uma coordenação paritária, com a Catarina Martins e o João Semedo, mantendo-se firme na oposição ao governo e às políticas de austeridade. O certo é que o extremar do radicalismo troikista à direita lançou alguns dirigentes do Bloco, em conjunto com algumas figuras mediáticas da esquerda, num movimento de pressão que pedia a aliança do Bloco com o Partido Socialista. A derrota pesada que essa proposta mereceu na direção do Bloco conduziu à saída de Ana Drago, ex-deputada, que em conjunto com Rui Tavares (ex-eurodeputado do Bloco, que rompeu com o partido para se juntar aos Verdes Europeus) formou uma nova plataforma intitulada LIVRE/Tempo de Avançar, que se apresentará a votos nas legislativas do final do ano. Esta formação, claramente à direita do Bloco, tem feito de uma futura aliança com o PS o centro da sua campanha, resultando daí um afrouxamento na crítica ao Tratado Orçamental e à política de privatizações. A plataforma alcançou de 1 a 2% nas sondagens.

Este movimento de fracionamento da esquerda extravasa o próprio campo do Bloco e é alimentado por esta ilusão de puxar o PS à esquerda, fruto do desenraizamento da luta social destes pequenos grupos, ou por uma pretensa missão de união da esquerda, dividindo o que diz pretender unir. Em meio a esta desorientação, a direção do Bloco, unificada num novo modelo de direção, com uma porta-voz e uma comissão permanente, tem defendido que qualquer frente capaz de criar alternativas de poder deve ser clara nas escolhas que permitam romper com a austeridade: renegociação da dívida, desvinculação do Tratado Orçamental, devolução dos cortes e reversão das privatizações. Esse campo, além de não incluir certamente o PS, não pode excluir os dois maiores partidos à esquerda, o Bloco e o PCP, que apesar do seu institucionalismo pesado continua a representar uma franja significativa da esquerda.

A vitória do PS nas próximas legislativa irá acelerar consideravelmente estes processos de recomposição. Até lá, dois desafios impõem-se à esquerda. O primeiro é o de saber como construir uma mobilização social consequente a partir de causas concretas. A arquitetura da política portuguesa torna mais difícil o apontar de um princípio de oposição unificador, como ensaiou o Podemos no Estado Espanhol com o conceito de “casta”, bastando recordar que a constituição portuguesa ainda mantém, ainda que esbatida, a expressão dos direitos populares alcançados durante a revolução dos cravos, o que resulta numa posição defensiva perante a vaga austeritária. Ainda assim, O Bloco assumiu a necessidade de se libertar da canga institucional para se lançar na organização de grupos e causas concretas, como a dos trabalhadores precários, dos movimentos em defesa dos serviços públicos, os estudantes, entre tantos outros. Sendo certo que um ataque mais ágil aos casos de corrupção e às ligações cada vez mais numerosas entre os políticos do centrão e o mundo dos negócios permitiria uma tradução popular das nossas propostas, uma vez que expõem a contradição entre o discurso dos sacrifícios permanentes e a ostentação de uma classe dirigente agressiva.

O segundo desafio é um esforço de entendimento. Portugal tem hoje duas grandes camadas de espoliados: cerca de um milhão de reformados que recebem pensões abaixo do limiar de pobreza; mais de dois milhões e meio de desempregados e trabalhadores precários. A subjetividade política com que estas populações experienciam as suas limitações é variável e marcada por um profundo isolamento políticos a que são sujeitos

O discurso esponjoso que procura absorver estas populações como parte da hecatombe da "classe média" pode servir a alguns, mas é demasiado curto para explicar as oscilações políticas que estamos a assistir. Pela primeira vez em duas décadas, uma parte considerável da população - estes 30% de que falamos - olha para o poder realmente existente, o poder colonial de uma União Europeia comandada desde Berlim, e não entrevê qualquer tipo de benefício futuro nem é mais capaz de reivindicar uma memória coletiva de ascensão social associada à União Europeia. O campo de resistência social à austeridade tem de se ancorar no princípio de oposição que não abdica de nomear o adversário: aqueles que na Europa e em Portugal patrocinam o Tratado Orçamental e o poder da burguesia financeira.

Nesse tempo que nos espera, não basta evidenciar o refluxo social como causa principal do recuo da esquerda. Há que buscar os meios para contrariá-lo. E, por isso, no debate que decorre sobre se é o regime que apodrece ou se o que importa é salvar o regime da podridão que o assola, seria importante não perder de vista o essencial: saber que o Serviço Nacional de Saúde, a Segurança Social e o direito ao emprego não são lugares legais e constitucionalmente adquiridos, são relações coletivas no centro de um conflito, pelo que exigem, para a sua manutenção, uma mobilização que seja ofensiva na forma como contesta e rejeita o simulacro de democracia que hoje nos apresentam.


[1] Cf. LOUÇÃ, Francisco; MÓRTAGUA, Mariana (2012), A Dividadura: Portugal na crise do euro, Lisboa: Bertrand.


[2] http://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/


[3] Estes programas foram criados pelo primeiro governo do PS, em 2009.


[4] COSTA, Jorge; CAMPOS, Adriano (2014), “Os burgueses: 40 anos de poder e recomposição”, in Vírus, nº 5, abril, pp. 13–19.

Sem comentários:

Enviar um comentário