12 março 2014

ROBOCOP, a automação da violência e a afirmação da escolha humana




Os que pensam que o remake de Robocop, o cult de Paul Verhoeven, pela lente de José Padilha (Tropa de Elite, Ônibus 171) é apenas mais um blockbuster, desenganem-se. O regresso do Robocop acontece numa América agitada pela guerra dos drones e pelo avassalador controle tecnológico da vida social. As questões morais e políticas levantadas por esse novo ciclo de agressão e imperialismo atravessam todo o filme.

Não há enganos, Robocop tem a sua boa dose de pancadaria monótona hollywoodiana e os efeitos especiais à medida de um filme de 130 milhões de dólares. O ritmo impaciente com que a trama se desenvolve limita a possibilidade de afeição do espectador à personagem de Alex Murphy, interpretado por Joel Kinnaman, que não consegue alcançar a presença e o carisma do primeiro Robocop (Peter Weller). Defeitos à parte, Robocop é um bom exercício de como olhar o uso da tecnologia em tempos de guerra e de crescente domínio do espaço público e privado.

O enredo é fiel ao filme original. Num futuro próximo, Alex Murphy é um policial numa Detroit dominada pelo crime organizado, após um atentado que o deixa à beira da morte é confinado a um corpo cibernético e apresentado publicamente como a solução para a pacificação da cidade. Nesta versão, contudo, a megacorporação responsável pela sua transformação, a Omnicorp, não tem carta branca para dispor a sua tecnologia em solo americano, estando responsável pelo controlo militar dos territórios controlados além-mares (Irão, Afeganistão, China). A cena inicial do filme mostra-nos uma patrulha de rotina de robôs e drones num bairro de Teerão, onde já não há mais soldados americanos, apenas máquinas controladas por uns quantos mercenários. A personagem do general do Pentágono responsável pelas operações explica a mudança: “Nós tivemos a guerra do Vietname, do Iraque, do Afeganistão, agora nunca mais, nós agora conseguimos os nossos objetivos sem nenhuma perda de vidas americanas”.

A referência não é inteiramente ficcional. O uso crescente de drones por parte do governo norte-americano no Afeganistão tem levantado uma onda de indignação e questionamento, sobretudo depois das revelações feitas pelo Wikileaks. Os planos da CIA para assassinar mais um cidadão norte-americano no Paquistão com o recurso a drones, reacenderam o debate sobre o uso indiscriminado desta tecnologia. Nas altas esferas militares e políticas não se trata sequer de questionar a legitimidade de elaborar “listas de morte” - assinadas por Barack Obama e executadas sem qualquer julgamento ou recurso a instâncias internacionais - ou a completa falta de garantias quanto aos impactos dos ataques sobre civis. Obama está apenas disposto a ceder no retirar gradual do programa de drones da esfera da CIA e entregá-lo ao Pentágono. É preciso lembrar que a CIA não é uma organização militar, o que aligeira ainda mais as possibilidades do seu recurso aos drones se fazer à margem das leis e convenções de guerra. 

O fim assassino da tecnologia não faz esquecer os meios pelo qual esta se cumpre. A “guerra youtube”, como lhe chamam, é conduzida por humanos, muitas das vezes instalados a milhares de quilómetros do cenário de guerra, onde, após comandarem ataques mortais, podem recolher aos lares e levar uma vida normal, sem nunca sentir o cheiro da guerra. No Robocop, a disputa entre Alex Murphy e as diretrizes informáticas a que o seu corpo robótico está sujeito simboliza esta mecânica infernal. Já não se trata de imaginar a ameaça de uma distopia em que as máquinas se rebelam contra a humanidade (o tema clássico presente no Exterminador do Futuro e Blade Runner), mas o de enfrentar a desumanização inerente à submissão tecnológica da guerra onde não há resistência por parte de quem comanda a máquina. A automação da violência abre portas perigosas, onde o fascismo de Estado não está distante.

Numa entrevista recente, José Padilha confessou que introduziu, sem o conhecimento do estúdio, referências aos pensadores da filosofia da mente, que nos ajudam a pensar as questões deste pendor. A personagem do médico responsável pela transformação do Robocop, Dennett Norton, remete ao filósofo Daniel Dennet, conhecido pela sua teoria que estabelece os estados mentais como entidades teóricas. A nossa consciência estabelecer-se-ia a partir de relações funcionais, de disposições semanticamente avaliáveis que apresentam poderes causais (crenças, convicções, discursos), e não apenas da acomodação orgânica dos nossos cérebros. Nesse quadro, a sua perspectiva evolutiva da cultura permite chegar à noção de uma competência sem compreensão (podemos repetir e reproduzir uma palavra ou uma ordem sem a compreender) – a dado momento, o Robocop tem a competência para matar, mas não a compreensão desse ato. A questão da escolha humana impõe-se, assim, como a capacidade de alterar o curso dos eventos. A vitória do Robocop é a derrota de Alex Murphy.  

Mas aqui, uma vez mais, o filme de Padilha remete para a crítica social. Este novo Robocop é mais poderoso, pois tem acesso a todo o circuito de informação e espionagem da cidade: câmaras de vídeo, cadastros policiais, comunicações. O seu poder panóptico é utilizado, numa primeira parte, de forma heróica, capturando fugitivos e assassinos condenados. Tudo se altera, no entanto, quando se depara com as imagens gravadas do atentado à vida de Alex Murphy, perpetrado pela própria Omnicorp. No clímax do filme, Murphy é capaz de utilizar a tecnologia em seu favor, criando uma oposição que afeta os seus opressores.  

Neste ponto, Robocop chega à questão fundamental, como o reconhecimento da automação da violência dá lugar à escolha, à organização de uma resistência?Para responder precisamos perceber se esta guerra por outros meios retira a capacidade de criação de uma cultura antibélica produzida pelos impactos de um confronto prolongado, tal como se assistiu no Vietname. Os exemplos de Edward Snowden e Chelsea Manning serão pontos possíveis de uma inversão nesse contexto, em que o caldo do movimento Occupy foi essencial, mas até ver, Alex Murphy segue sendo um combatente solitário. 

*Fica prometida para breve uma crítica ao primeiro filme, neste mesmo espaço, pela pena do Ricardo Coelho.

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