16 julho 2014

As mulheres são objectos, há jornalistas sem vergonha e a saga continua



Deparei-me há uns dias com este artigo, publicado no Correio da Manhã. A fama do Correio da Manhã como antro de incompetências e espectáculos passa, com esta notícia, a ganhar mais volume. Mas não é isso que choca mais, o mau jornalismo a que este jornal nos habituou já chega, perante o impropério que existe neste texto, a passar ao lado. O que mais choca neste artigo, que se refere a uma miúda de 15 anos que foi vítima de duas agressões sexuais, é a posição de quem o escreve, a banalização da agressão que é atirada à cara dos leitores. Vai mais longe: o artigo apresenta a miúda como aleivosa, mentirosa, tortuosa, empurrando os crimes para segundo plano, quase sugerindo que eles, afinal, nem são assim tão maus, o ponto principal da notícia, quiçá uma coisa perdoável ou justificável, outra coisa que não o reflexo de uma profunda injustiça hedionda que existe neste mundo comido pelo patriarcado.

Carolina, a jovem em questão, acusou 6 colegas de a terem violado. Foi vítima de duas agressões. Numa delas, foi arrastada e atacada durante duas horas (!). As perícias afirmam que, dessa vez, houve “agressão sexual mas sem penetração” (a utilização da conjunção adversativa já serve, aqui, para perdoar, para atenuar, como se, afinal, interessasse assim tanto o tipo de agressão de que foi vítima, como se só uma é que pudesse ser a sério). Ao ter sido confirmado pelas perícias que houve uma agressão sexual, ao ter sido confirmado que essa agressão não envolveu penetração, os autores do artigo acham legítimo considerar que a “violação” foi “desmentida”. Acham legítimo dar a ideia de que a vítima é uma megalómana, aleivosa, pouco séria.

Repare-se que o foco da notícia não está no machismo de todos os dias, no grupo de rapazes que achou por bem ter um brinquedo humano a passar de mãos em mãos. Está no facto de uma miúda que teve de passar por isto ter dito que foi violada para depois se saber que, durante a agressão, por mais vítima que tenha sido, não o foi de penetração.

Chegados aqui, só nos resta dizer: ok, não houve penetração - e depois? O que é que importa? De que forma pode isso diminuir a violência de que foi vítima? De que forma pode isso negar que este nojo nosso de cada dia se exerce por via dos opressores e não dos oprimidos? De que forma deixa esta acção colectiva menos repugnante?

Mas a saga continua. Reparemos no último parágrafo, em que é dito que os familiares dos suspeitos dizem que a vítima é “problemática” e que chegou a pedir desculpa a um dos rapazes. “Um filho não é nunca um criminoso”, dizia António Patrício, referindo-se ao seu D. João, mas, se esse filho, com o seu grupo de amigos, achar que está no direito de subjugar uma mulher como lhe apetecer, não podemos passar a achar que o problemático é ele? Quando ao pedido de desculpa, seja verdade ou não que aconteceu, a verdade é que, acontecendo, não chocará ninguém que viva numa sociedade em que notícias destas são escritas e publicadas e em que uma miúda é vítima deste tratamento por ter cometido o erro pecaminoso de se ter dito “violada” e não “vítima de agressão sexual”.


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