31 janeiro 2015

A casinha dos pais será eterna?

Ainda se lembram do milagre económico anunciado por Paulo Portas? Pois é. Um ano depois, morreram os heróis da epopeia em que se transformou a recuperação económica portuguesa. Toda a propaganda das exportações (que, por sinal, abrandaram), da nova economia submarina, da prontidão lusitana em enxugar a economia para o crescimento sustentável, não resiste às previsões dos próprios parceiros da austeridade. O novo relatório do FMI fala-nos do país que perdemos e do que ainda vamos enfrentar: em 2019, a economia portuguesa ainda não terá recuperado os níveis de 2008 e o desemprego irá afetar 19% da população. Uma década de austeridade, uma década perdida.


A incorporação nas projecções do desemprego dos desencorajados e dos trabalhadores em part-time involuntário, para além de dar razão a quem tem criticado os números oficiais, diz-nos como a austeridade é um regime baseado na existência de um enorme desemprego estrutural. A economia portuguesa teria de crescer a uma média de 5,5% entre 2014 e 2019 para o desemprego atingir os níveis de 2008, ainda acima do aceitável para uma economia capaz segundo a maioria dos economistas. E ninguém acredita que numa Europa em que Merkel governará por mais três anos esse crescimento seja possível.

Clausewitz em Atenas?

Um dos dados mais curiosos dos eventos pós-25 de Janeiro é este: a coerência táctica e, aparentemente, estratégica do novo governo grego. A conferência de imprensa Dijsselbloem-Varoufakis ilustra essa coerência.

Paul Mason escreve isto:
Marxists, and the left in general, have a good knowledge of military strategy. Mr Varoufakis is not a Marxist: he is a left Keynesian, but comes from a political tradition where power is understood very well. (...) Even moderate leftists in the Euro-communist tradition — which includes Syriza – have grown up studying the dynamics of power. The Italian Marxist Antonio Gramsci, after whom numerous streets are named in left-controlled cities of his home country, said the modern communist party should be the “modern Machiavelli”: able to wield power, subterfuge and tactics adeptly and leverage, above all, its social support.

O BES e a Grécia

No Crooked Timber, Daniel Davies (exige leitura cuidadosa e crítica, mas vale a pena);
Here’s something which struck me when I was putting together an end of year review of developments in bank regulation. Euroland had a real, credible stress test and it wasn’t the one that we were all looking at. The real stress test in 2014 was the restructuring of Banco Espirito Santo. 
The successful outcome from BES must surely encourage the Eurosystem policy makers to think that Greek euro exit, if it happens, could be contained. It’s no longer all that likely that any Euroland bank has big enough Greek exposure to knock over its capital, and even if there is a genuine liquidity squeeze, the ECB can pour out liquidity support much more aggressively than it did in 2011, because it knows that its own balance sheet risk is small. In 2011, theESCB’s unsecured funding was at risk of loss, because in the event of insolvency it would be just another unsecured creditor in most European legal systems. In 2015, the new structures of the Bank Resolution and Recovery Directive means that the ECB, along with all other short term and interbank creditors, get to effectively jump the priority structure by putting banks into BES-style resolution, making themselves safe by hosing the long term creditors without ever letting them see the inside of a bankruptcy court.



30 janeiro 2015

Marques Guedes e os contos de crianças

O ministro da Presidência e dos Assuntos Parlamentares, Luís Marques Guedes, disse mesmo na quarta-feira à noite em Aveiro que "a diferença entre a Grécia e Portugal lembra a história da cigarra e da formiga".

A Wikipedia diz que há muitas histórias da cigarra e da formiga. Só não explica é a razão pela qual um ministro precisa de recorrer a fábulas para descrever relações bilaterais. Entretanto, Bardem:


Pronto, privatizaram o desemprego


A economia portuguesa não consegue recuperar a capacidade de criar empregos duráveis. A ligeira descida do desemprego no último ano não esconde a enorme transformação imposta pela austeridade, inaugurada em 2010 com o PEC I. Cinco anos depois, Portugal tem 580 mil empregos a menos. A transição para um padrão marcado pelo aumento do subemprego e pela contração salarial, com metade de população ativa já em situação de precariedade e desemprego, apoia-se precisamente nessa destruição de empregos e consequente reentrada dos trabalhadores pela porta do trabalho precário.

Com o ferrolho colonial europeu a limitar a capacidade de investimento e a necessária recuperação dos salários, restou aos governos esconder a subserviência económica endeusando as chamadas "políticas ativas de emprego". À semelhança dos governos socialistas, o CDS, atual comandante da pasta, escolheu duas vias para estas políticas: a ocupação compulsória dos desempregados em cursos de formação da mais duvidosa qualidade e utilidade e o reforço da transferência de fundos públicos para as empresas através do emprego subsidiado, os estágios. Os centristas trouxeram, é certo, a sua marca própria com a perseguição aos desempregados de longa duração, que tanto dependem do RSI para não viver em pobreza extrema.   

29 janeiro 2015

A economia política dos paralíticos

Esta é especial para José Rodrigues dos Santos, Fernando Ulrich e companhia. E acompanha o Ricardo Paes Mamede, que disse aquilo que precisa de ser dito: o problema é outro e mais profundo.

Mas os mitos têm muita força. Porque os gregos não pagam impostos. Porque os gregos são todos uns paralíticos. Porque os gregos são todos cabeleireiras ou trompetistas. Os mitos têm muita força porque beneficiam do privilégio de não serem entendidos como objecto de interrogação. A partir do momento em que são interrogados, dissolvem-se. A não ser que sejam produto de interesses de classe e de um conflito que continua ganho pela oligarquia dominante.

E porque, no meio disto tudo, ainda não falámos, por cá, do LuxLeaks, provavelmente a revelação política mais importante dos últimos vinte anos. Hoje, não é preciso ser um marxista relativamente tradicionalista para perceber que a justiça fiscal é um conflito de classe disfarçado de mito. A justiça fiscal tem uma economia política concreta. E esta imagem explica quase tudo:

A política do possível, ou… Como bocejar com polido realismo?

Queria contar-vos, no espaço de algumas linhas, a história da política do possível. 

Ao contrário de outras histórias, efabulatórias e perigosamente imaginativas, a história da política do possível não começa com “era uma vez…”. Na verdade, ela é tão bolorenta e tão repetitiva que é preciso poupar nos intróitos, não vá congelar os ouvintes e o próprio narrador numa espécie de inanição mortífera. Vamos directos e ligeiros, que o tempo urge e as palavras custam.

A política do possível é um esmifrado encolher de ombros que, em vez de se reduzir à insignificância que a define em si mesma, se revela fundamental para manter a ordem das coisas. Ela é presente e passada (só não é futura porque não queremos poluir o possível com incertezas temporais). Três características fundamentais resumem a política do possível:

28 janeiro 2015

Serginho quer vender a TAP


Anita abre uma conta nas Ilhas Caimão

Paul Mason, do Guardian, escreve assim:
The oligarchs allowed the Greek state to become a battleground of conflicting interests. As Yiannis Palaiologos, a Greek journalist, put it in his recent book on the crisis, there is “a pervasive irresponsibility, a sense that no one is in charge, no one is willing or able to act as a custodian of the common good”. 
As for the Greek oligarchs, their misrule long predates the crisis. These are not only the famous shipping magnates, whose industry pays no tax, but the bosses of energy and construction groups and football clubs. As one eminent Greek economist told me last week: “These guys have avoided paying tax through the Metaxas dictatorship, the Nazi occupation, a civil war and a military junta.” They had no intention of paying taxes as the troika began demanding Greece balance the books after 2010, which is why the burden fell on those Greeks trapped in the PAYE system – a workforce of 3.5 million that fell during the crisis to just 2.5 million.
Faz lembrar a economia política de um certo regime fascista. E faz lembrar certas e determinadas declarações dos últimos dias/meses por cá:

27 janeiro 2015

Comparações e coligações

Retomando uma questão que me preocupa há bastante tempo.

Tsipras ainda não tinha tomado posse e duas coisas já eram claras: vamos ter muita comparação para fazer, abusiva ou não, e vamos ter muita pedra para partir, no que respeita à escolha do partido ANEL para parceiro de coligação.

I
Sobre o primeiro problema, já se escreveu bastante. Alexandre Afonso escreve aqui sobre um efeito concreto, que pode explicar a razão pela qual o PS e o PSOE parecem apostados em cavalgar a vitória da SYRIZA: a política de cartel não tem sucesso garantido; os processos políticos não são sempre domesticáveis por pressões económicas indistintas; e, por fim, podemos comparar os países do sul da Europa, mas precisamos de ter cuidado com as comparações. O sistema político português tem pouco a ver com o sistema político grego. A cultura política portuguesa tem muito pouco a ver com a cultura política grega. A Espanha não é a Turquia, a não ser que alguém considere Olivença "uma questão" semelhante à do Chipre.

É evidente que podemos identificar um número elevado de semelhanças: de acordo com critérios minimalistas, são democracias liberais consolidadas, partilham a mesma moeda e um conjunto de tratados internacionais, incluindo aqueles que configuram a UE e a UEM. Ambos os países foram ou são alvo de programas de ajustamento estrutural e transferência de rendimento entre o trabalho e o capital. Tudo isto é verdade, mas o comentariado televisivo compara a Grécia a Portugal com a mesma habilidade com que um chimpanzé pinta um Vermeer.

Poulantzas e uma leitura da estratégia SYRIZA

Já se escreveu muito sobre o tema. A escolha do partido ANEL - que não é, convençamo-nos disso, a Aurora Dourada - pode significar muitas coisas e, para a esquerda liberal (especialmente essa), nenhuma delas é boa. Eu diria outra coisa: a escolha de Varoufakis para ministro das Finanças é mais indicativa da preocupação que esse sector deve sentir. Quem acompanha o seu trabalho e conhece a crítica dura feita a Piketty - um dos delfins da dita esquerda liberal e o papão da direita iletrada - percebe o que quero dizer.

No Leninology, Richard Seymour oferece uma visão interessante:

It is a convergence of a strategic perspective associated with right-Eurocommunism, tactical calculations deriving from the dynamics of parliamentary majorities and negotiations, and contingent elements of the terrain such as the flux of popular struggle, and the attitude of other leftists.  It is an informed calculation which can precisely be criticised as such. 

A falsa higienização e a visão retrógrada da noite de Lisboa


No passado dia 13 de Janeiro a Assembleia Municipal de Lisboa (AML) discutiu e votou um conjunto de recomendações defendidas por uma petição de 624 moradores de bairros históricos e de diversão noturna da cidade de Lisboa, em particular do Bairro Alto e do Cais do Sodré. O problema da petição não é novo. Trata-se do excesso de ruído para os moradores destas zonas, que decorre essencialmente do facto de elas serem zonas privilegiadas de diversão noturna para os cidadãos e as cidadãs lisboetas.
Não sendo novo, o problema é bastante moderno. Depois de anos a fio em que o Estado Novo colocava sérios impedimentos à utilização do espaço público, aos ajuntamentos de pessoas e ao uso da noite para diversão e convívio, só o 25 de Abril abriu portas ao direito à cidade, ao uso livre e coletivo do espaço público pelos cidadãos e pelas cidadãs e a uma visão moderna e democrática da vivência da cidade. Contudo, perante as queixas dos moradores relativamente ao ruído, os agentes da cidade e o poder político tinham obrigação de responder com seriedade à seguinte questão: será possível compatibilizar os diferentes usos que as pessoas atribuem ao Cais do Sodré, ao Bairro Alto e à Bica sem cair em tentações proibicionistas, autoritárias e conservadoras de restrição dos direitos e das liberdades individuais?
Eu acho que sim. Mas para o fazer exigem-se pelo menos três coisas que estão muito longe de existir em Lisboa: a recusa das lógicas corporativas entre os atores envolvidos; a capacidade de entender que a cidade é um espaço público que não é só para alguns; e a inteligência política para saber encontrar soluções coletivas.