Há uma pergunta
que me tem perseguido incessantemente e para a qual nunca consegui dar uma
resposta convincente: por que razão aos 16 anos gostei tanto de trabalhar no McDonalds, quando recebia a miserável quantia de 2,55 euros à hora e não tinha
qualquer estabilidade de horários? Embora tenha estudado um contexto
organizacional diferente, é também sobre esses processos que fala João Carlos
Louçã no seu livro “Call Centers – Trabalho, Domesticação e Resistências”
(Deriva, 2013). Nele encontramos uma análise cuidada sobre os modernos processos
de exploração, os dispositivos mais subtis e eficazes de produção de
consentimento e as formas de resistência que, num contexto tão desfavorável, ainda
assim se fazem sentir.
João Carlos Louçã mergulha nas vidas de 19 trabalhadores/as
de várias idades, experiências profissionais, origens familiares, habilitações,
tipos de contrato e funções organizacionais. Não ambicionando uma caracterização
extensiva, o livro permite um olhar intensivo sobre as dinâmicas do trabalho,
da sua organização e das identidades e resistências que nele emergem. Nenhum
outro estudo em Portugal chegou tão longe na visibilização dos mundos ocultos
dos Call Centers a partir das histórias dos seus protagonistas.
Estes espaços representam uma organização do trabalho
onde a precariedade é o sufoco de quem “de contrato em contrato” adia
permanentemente a sua vida. Neles “os momentos de renovação de contrato são
momentos de stress e dúvida para muitos trabalhadores/as (…) as pessoas
sentem-se invariavelmente à disposição das flutuações da necessidade de
mão-de-obra, da arbitrariedade do mercado de trabalho, da subjetividade dos
critérios de avaliação do seu desempenho” (pp.77). Esta arbitrariedade é a
marca de todo o trabalho estruturalmente organizado em processos de avaliações que
constituem verdadeiros dispositivos de poder em que quem trabalha é a parte
mais desprotegida.
Recensão publicada na Revista Vírus
A instabilidade característica da renovação de contrato
contamina todo o “espírito da empresa” subvertendo alguns dos fatores mais
elementares das relações de trabalho: a estabilidade do horário e a segurança
de um salário. A subversão é absoluta: para ter um salário que ultrapassasse os
500 euros é preciso ser merecedor de prémios de produtividade. É uma verdadeira
“corrida atrás da cenoura” (pag.73) que ajuda a sedimentar a lógica da
“produtividade como ideologia” (pag.68). O controlo dos espaços e ritmos de
trabalho e socialização é fundamental, sendo feito através de um implacável
sistema de gestão informatizada do tempo que controla, ao segundo, os horários
e as pausas. Um disciplinador panóptico foucaultiano, mas informatizado e com
vigilantes permanentes.
Esta instabilidade produz um
cansaço psíquico que todos os trabalhadores entrevistados referem. Um cansaço em
que “já nos é difícil ouvirmos-mos a nós mesmos” (entrevistada Lara, pp.61), mas
que é mitigado por novas estratégias de gestão que disseminam o “espírito de
equipa”, a “humanização dos espaços de convívio no trabalho” e as sessões de “Team
Building”, onde se ameniza o conflito e se vende a ilusão da horizontalidade da
empresa.
João Carlos Louçã apoia a análise das dinâmicas dos Call
Centers num quadro sólido do marxismo crítico e antidogmático, na antropologia
económica de Susana Narotzki e na antropologia das resistências de James C. Scott.
Mas este quadro é completado com uma pluralidade de referências: as questões das
desigualdades, das classes e do trabalho nas sociologias de Robert Castel,
Bourdieu, Burawoy, Renato Miguel do Carmo, Elísio Estanque, Nuno de Almeida Alves
ou Boaventura Sousa Santos; na filosofia militante de Daniel Bensaid; na
historiografia sociocultural de E.P. Thompson; e finalmente na voz dos/as
ativistas precários no livro “Dois anos a FERVEr, retratos de luta, balanços de
precariedade” do coletivo FERVE. Este quadro dinâmico é mobilizado no que o
autor muito bem chama uma “antropologia comprometida com os direitos humanos e
com as raízes em todos os processos históricos que apontaram caminhos para a
emancipação” (pp.18).
É por isso que neste livro a análise dos Call Centers é
inscrita no quadro de uma sociedade de classes, de conflitos e de interesses
contraditórios entre quem vive do seu trabalho e quem vive da exploração do
trabalho de terceiros. Propõe um entendimento das relações laborais não apenas
em termos das categorias da posição na produção – facto que, muito bem
identifica, remeteria para uma “perceção individualizada das situações de
classe” (pag.28) -, mas sobretudo na análise da organização da produção
enquanto conjunto de relações sociais dinâmicas, dialéticas e necessariamente
conflituais onde emergem processos de resistência.
Sophia de Mello Bryner em “Nomes das Coisas” [1977]
publicava um poema sobre 25 de Abril onde se referia a uma madrugada “onde emergimos
da noite e do silêncio e livres habitamos a substância do tempo”. Essa será uma
das principais características dos processos de emancipação: neles habitamos a
substância de um tempo concreto no qual vivemos sem amarras; e neles projetamos
o tempo futuro enquanto possibilidade de caminhar num sentido definido pelo
poder das nossas ações. É também dessa substância do tempo que nos fala João
Carlos Louçã.
Os Call Centers representam o tempo enquanto palco de
conflitos. Refletem um tempo congelado que inviabiliza o presente e o futuro, ilustrando
um “novo campo nas relações laborais onde regridem, em grande medida, os
direitos conquistados pelas gerações do pós-guerra” (pp. 20), mas refletem também
um tempo em que as contradições do processo de exploração fazem emergir, mesmo
nos terrenos mais difíceis, formas de resistência subterrâneas, mais
individuais ou mais coletivas, que se experimentam diariamente. São os sujeitos
dessas resistências, esse “novo proletariado” a que se refere o entrevistado Ricardo
(pag.24), que vemos na rua à porta dos locais de trabalho:
“A rua é o local de escape de liberdade, palco de conversas ocasionais,
para a escolha dos grupos de socialização, para identificações coletivas, para
cada pessoa que trabalha voltar a ser, por momentos, dona do seu tempo. Nem que
seja só para recuperar energias e ser capaz de voltar ao trabalho” (pp.80)
Haverá um dia em que a energia que se ganha na rua quando
se faz uma pausa poderá não ser apenas para voltar ao trabalho mas para ocupar
a substância do tempo. Pelo rumo da vida e pela brilhante análise que João
Carlos Louçã nos desvenda, há fortes razões para acreditar que esse dia será
mais cedo do que tarde.
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