Deparei-me há uns dias com este
artigo, publicado no Correio da Manhã. A fama do Correio da Manhã
como antro de incompetências e espectáculos passa, com esta
notícia, a ganhar mais volume. Mas não é isso que choca mais, o
mau jornalismo a que este jornal nos habituou já chega, perante o impropério que existe neste texto, a passar ao
lado. O que mais choca neste artigo, que se refere a uma miúda de 15 anos que foi vítima de duas agressões sexuais, é a posição de quem o escreve, a banalização da agressão que é atirada à cara dos leitores. Vai mais longe: o
artigo apresenta a miúda como aleivosa, mentirosa, tortuosa,
empurrando os crimes para segundo plano, quase sugerindo que eles,
afinal, nem são assim tão maus, o ponto principal da notícia,
quiçá uma coisa perdoável ou justificável, outra coisa que não o
reflexo de uma profunda injustiça hedionda que existe neste mundo
comido pelo patriarcado.
Carolina, a jovem em questão, acusou 6
colegas de a terem violado. Foi vítima de duas agressões. Numa
delas, foi arrastada e atacada durante duas horas (!). As perícias
afirmam que, dessa vez, houve “agressão sexual mas sem penetração”
(a utilização da conjunção adversativa já serve, aqui, para
perdoar, para atenuar, como se, afinal, interessasse assim tanto o
tipo de agressão de que foi vítima, como se só uma é que pudesse
ser a sério). Ao ter sido confirmado pelas perícias que houve uma
agressão sexual, ao ter sido confirmado que essa agressão não
envolveu penetração, os autores do artigo acham legítimo
considerar que a “violação” foi “desmentida”. Acham
legítimo dar a ideia de que a vítima é uma megalómana, aleivosa,
pouco séria.
Repare-se que o foco da notícia não
está no machismo de todos os dias, no grupo de rapazes que achou por
bem ter um brinquedo humano a passar de mãos em mãos. Está no
facto de uma miúda que teve de passar por isto ter dito que foi
violada para depois se saber que, durante a agressão, por mais
vítima que tenha sido, não o foi de penetração.
Chegados aqui, só nos resta dizer: ok,
não houve penetração - e depois? O que é que importa? De que
forma pode isso diminuir a violência de que foi vítima? De que
forma pode isso negar que este nojo nosso de cada dia se exerce por
via dos opressores e não dos oprimidos? De que forma deixa esta
acção colectiva menos repugnante?
Mas a saga continua. Reparemos no
último parágrafo, em que é dito que os familiares dos suspeitos
dizem que a vítima é “problemática” e que chegou a pedir
desculpa a um dos rapazes. “Um filho não é nunca um criminoso”,
dizia António Patrício, referindo-se ao seu D. João, mas, se esse
filho, com o seu grupo de amigos, achar que está no direito de
subjugar uma mulher como lhe apetecer, não podemos passar a achar
que o problemático é ele? Quando ao pedido de desculpa, seja
verdade ou não que aconteceu, a verdade é que, acontecendo, não
chocará ninguém que viva numa sociedade em que notícias destas são
escritas e publicadas e em que uma miúda é vítima deste tratamento
por ter cometido o erro pecaminoso de se ter dito “violada” e não
“vítima de agressão sexual”.
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