Sobre a crise no Grupo Espirito Santo, tem-se apontado muito o dedo à inércia das entidades supervisoras. Como foi possível que passivos de milhões não fossem detectados e considerados graves, tendo em conta as interrelações das empresas da holding e o peso que o contágio da dívida e da desconfiança dos mercados de umas para as outras teria na economia nacional e europeia?
E já
agora, outra vez, o que andava o banco de Portugal a fazer até o buraco negro
no BPN se tornar público? E no caso do BPP?
Estas
são as perguntas que toda a gente tem feito e que a esquerda também continua a
fazer, mas que, sendo válidas num determinado quadro mental, não devem bloquear
uma outra mais fundamental, sobre se estamos a fazer as perguntas certas.
Estas
perguntas pedem respostas dirigidas a melhorar o sistema de supervisão e
regulação do capitalismo financeiro. O dedo que me interessa apontar aqui às
entidades reguladoras e supervisoras não é à dona Inércia no Banco de Portugal, mas à extrema actividade,
diria mesmo activismo, destas instituições.
Desde
o colapso da Lehman Brothers, as instituições europeias montaram um aparato
eficaz de divulgação de que tudo ia ser feito para restaurar o sistema bancário
e financeiro. Comités de Basileia, financial roadmaps, directivas europeias
para regular fundos de investimento alternativos, stress tests à banca, etc.
montaram um poderoso dispositivo destinado a criar dois discursos: o primeiro,
o óbvio, que depositantes e investidores podiam descansar, o sistema financeiro
e bancário europeu estava preparado para resistir no pior cenário! Critérios
técnicos tinham sido desenvolvidos e aplicados por experts para produzir com
exactidão científica e politicamente inquestionável a prova da resiliência dos
bancos.
Poderíamos
discutir o que raio se passa neste diferencial entre o ‘pior cenário possível’ implícito
nas metodologias dos stress-tests e os buracos financeiros que de facto depois
vêm a público (o BES até anunciou aos quatro ventos que tinha sido o único
banco privado com rácios que lhe permitiram não recorrer ao fundo de recapitalização
da banca garantido pelo Estado). Mas é o segundo efeito deste aparato que me
interessa mais: esta azáfama discursiva toda pretende criar a sensação de que
há um ‘pior’ que esperar, um cenário catástrofe que é preciso planear e para o
qual há que estar sempre a postos.
É
notável como a governação neoliberal tem ido buscar inspiração às técnicas de
planeamento de desastres naturais para produzir uma visão afectiva dos mercados
não como imanência das acções politicamente configuradas de pessoas e
instituições, mas como fenómeno natural autónomo, imprevisível e em constante
mudança, e que faz menos sentido regular do que antecipar a magnitude dos
impactos que pode ter.
Esta
economia política como meteorologia, implícita nos aparatos de regulação e
supervisão do sistema financeiro, é decisiva na articulação dos dois eixos em
que se desenvolve a gramática da governação neoliberal: por um lado, o eixo
catástrofe-ansiedade, em que a categoria de excesso, de impacto excessivo, artificialmente
produzida nos stress-tests, não só desvia a crítica da natureza em si das
práticas especulativas e da organização do sistema para a gradação da
intensidade dos seus efeitos, como produz uma atmosfera de antecipação e
ansiedade perante a iminência imprevisível desse excesso; por outro lado, o
eixo robustez-confiança, em que, por via desse limiar do ‘excessivo’, as instituições
financeiras são discursivamente isoladas das tempestades que produzem e
colocadas nos seus antípodas, isto é, como porto seguro, transparente e robusto,
a única resposta às ansiedades do indivíduo que, nestes tempos incertos e de
mudança tão rápida, e perante um Estado Social opaco, despesista e
insustentável, é responsável pela sua segurança financeira e da sua família.
Se insistirmos em manter a pergunta
o-que-andam-as-entidades-supervisoras-a-fazer-quando-acontecem-casos-como-o-BPN-e-o-BES?,
então que a pensemos sempre em articulação com todo o aparato de regulação,
stress-tests e rácios de capital mínimos e categorias como a do “pior cenário possível”. Todo o choque e surpresa com casos destes devem ser sempre lidos em conjunto com o mediatismo do planeamento catástrofe, considerando a sua produtividade táctica no quadro do poder neoliberal. À Esquerda não deveria portanto bastar um diagnóstico que aponte o dedo à D. Inércia e exija mais regulação, num quadro dicotómico problema-solução. À Esquerda importa tornar visiveis as formas como, por via da gramática e técnicas referidas, o aparato regulação-supervisão da finança neoliberal não só normaliza
as instituições financeiras relativamente ao excesso projectado, como é efectivamente biopolítico, isto é, governação da vida enquanto tal, uma economia dos medos e dos prazeres, da forma como sentimos e falamos das nossas ansiedades e desejos para o futuro.
Não é verdade que o BES passou em todos os stress testes recentemente efectuados? Que credibilidade sobra agora para esses testes? E para o BdP?
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