Não
é novidade para ninguém que as universidades são um palco de lutas pelo
exercício e autoridade do poder. Desde 1088 que os então Studium
Generale e mais tarde as universidades viviam uma relação ténue entre
o poder eclesiástico e o poder político das monarquias. Mas é também na época
moderna que se consolidaram instituições de ensino que nunca deixaram de ser
permeáveis ao exercício do poder político e económico. Recordemos os casos de
Ludwig Bernhard (1875-1935) que foi nomeado politicamente por decreto
governamental para um cargo académico sem qualquer consulta aos órgãos
científicos da universidade ou Robert Michels (1876-1936) impedido de se candidatar
a professor por ser militante do Partido Social Democrata Alemão e não batizar
os seus filhos.
Mas
se olhando para a evolução democrática das nossas sociedades, estes casos
denunciados por Max Weber em 1908 parecem de um tempo distante, o recente
episódio de censura na revista cinquentenária Análise Social do Instituto de
Ciências Sociais (ICS) mostra-nos como a liberdade académica consegue ser,
ainda hoje, absolutamente permeável ao exercício do poder político, ideológico
e conservador.
Na
Analise Social, o investigador Ricardo Campos da Cemri – Universidade Aberta,
iria publicar o ensaio visual “A luta voltou ao muro”, sobre a forma como a
contestação social em Portugal voltou a ser feita nas paredes, em inúmeros
graffitis que pela cidade de Lisboa questionam o poder financeiro, económico e
político que tem governado Portugal e a Europa. O ensaio foi aceite e a revista
foi editada e lançada na sua versão online. Contudo, o Diretor do ICS, José
Luís Cardoso, deu ordens para que fossem destruídos os exemplares impressos da
revista por considerar o ensaio de “mau gosto e uma ofensa a instituições e
pessoas que não podia tolerar”. José Luís Cardoso considerou que tinha o
direito de fazer do seu critério moral e ideológico, o critério científico de
aceitação do ensaio. Assim, desautorizou diretamente o Diretor da Revista, João
de Pina Cabral, um dos mais reputados antropólogos portugueses e europeus, para
defender “o bom nome e a reputação institucional do ICS”.
João
de Pina Cabral insurgiu-se contra a decisão acusando José Luís Cardoso de uma
“um gesto de censura”. José Luís Cardoso em resposta defende o indefensável:
“trata-se de um ato de gestão” (…) “de garantir uma imagem de dignidade (…)
Estou seguro da bondade desta decisão, que não representa qualquer ato de
privação de liberdade».
José
Luís Cardoso perceberá de história económica e, seguramente, de finanças e
reputação. Mas ignora a história das ciências sociais e do Instituto que
dirige. Como João de Pina Cabral muito educadamente se encarregou de lhe
explicar: “existe mesmo uma volumosa e respeitável tradição nas ciências
sociais de estudar e preservar as formas públicas reprimidas de manifestação de
insatisfação popular”. As ciências sociais sempre tiveram correntes que
procuraram a visibilização das condições miseráveis em que vivem muitas
sociedades e muitos grupos dentro delas, mas também das suas formas de
expressão e contestação. Como José Luís Cardoso deve compreender, nenhum
diretor de um Instituto tem poder de apagar essa história, muito menos de
condicionar a liberdade académica de alguém em função da sua própria posição no
campo académico, ideológico, político ou intelectual.
Como
demonstrou o ensaio censurado, e como muito bem defendeu recentemente o
sociólogo André Pereira, “o graffito assume-se como um
modelo de arte de intervenção (Ferrell, 1995), incorporando mensagens e
ideologias através das imagens e da sua construção”. Não faltam na história
exemplos disso. Na verdade, quer as formas, os mecanismos e os conteúdos da
contestação social, quer as condições de vida de quem a exerce, são alvos de
reflexão desde há pelo menos 3 mil anos na Grécia Antiga, há mais de 200 anos
nas ciências sociais modernas e há cinquenta anos na Análise Social. Em 1969,
numa altura bem difícil, Adérito Sedas Nunes e Miller Guerra publicavam o seguinte, precisamente na
Análise Social:
“O
essencial é que as estruturas internas, as formas de organização e gestão e as
condições gerais de funcionamento das instituições universitárias remodeladas
sejam tais que naturalmente as levem a servir-se da sua própria autonomia, não
para se isolarem da vida social e cultural, imobilizando-se perante o movimento
histórico, mas, pelo contrário, para mais estreitamente se ligarem à sociedade,
participando activamente na sua transformação e transformando-se a si mesmas, a
fim de melhor se adaptarem às exigências do desenvolvimento social. Só a
instituições inovadoras a autonomia servirá como instrumento de inovação. Em
instituições de tendência conservadora, representaria, essencialmente, um
instrumento de conservação."
A
conceção que aqui está em causa é precisamente a que Sedas Nunes questionava em
1969: em universidades conservadoras a autonomia só serve o isolamento, a
conservação e a resistência à mudança.
José
Luís Cardoso diz que a revista “continua a ser um espaço onde a liberdade
académica é sagrada”. Desde que quem defina o que é “liberdade” seja ele
próprio. Mas valia a pena lembrar ao Diretor do ICS aquilo que George Orwell
escrevia numa carta já antiga, mas imensamente atual:
"Se
a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras
pessoas o que elas não querem ouvir."
É
assim na vida. Deveria ser assim também na academia.
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