A
crise e a centralidade das desigualdades no século XXI
Haverá desde o século
XIX poucos assuntos tão relevantes e tão estudados na generalidade das ciências
sociais como seja o assunto das desigualdades sociais. E ainda assim, quando
olhamos hoje para a realidade e para os dados, não haverá questão mais central
na Europa e no mundo. Na verdade, o debate que hoje se trava na Europa sobre o
futuro do Estado-social está irredutivelmente ligado à questão das
desigualdades, porque quer os serviços públicos, quer o Estado-social, foram
erguidos no quadro de um conflito social permanente contra o que Charles Tilly
(2005) muito bem apelidou de “mecanismos sociais explicativos das desigualdades”, isto é, os “mecanismos da exploração”,
os “mecanismos de fechamento de oportunidades” e os “mecanismos de
seleção-distribuição”.
Na segunda metade do
século XX, depois de décadas de guerras, crises e experiências autocráticas, a
Europa tornou-se um espaço onde no quadro da relação de forças daquela época
histórica, foi possível construir uma nova ideia de democracia política e uma
moderna conceção de Estado-social. Ambos só puderam ser concretizados no quadro
do aumento da escolarização, da mobilidade social, do crescimento económico e
do esbatimento das desigualdades. Mas eles também só podem ser explicados à luz
da relação de forças entre capital e trabalho, no quadro de organizações
sindicais fortes e representativas, conflitos laborais intensos, revoluções
culturais, sociais e filosóficas de grande alcance, novos movimentos sociais e
culturais e uma dinâmica de mobilização geral que permitiu avanços económicos,
sociais e laborais sem precedentes.
Contudo, desde os anos
80 que com o ciclo de Margaret Tatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos EUA,
a Europa e o mundo vivem um momento de viragem política. Foi nesse momento que,
acompanhado com o desmoronamento do chamado “socialismo real”, Fukuyama (1992),
excitado com o ritmo dos acontecimentos, se apressou a anunciar que tínhamos
chegado ao “fim da história”, enquanto também nos anos 90 outros vaticinavam o
“fim do trabalho” (G. Aznar, K. Eder, A. Gorz), o “fim das classes” (Clark,
Lipset, R. Aron, Lautman, Pakulski, M. Waters) ou a chegada à “era do vazio”
(Lipovetsky).
Hoje, passadas mais de
duas décadas e em plena crise capitalista, o argumento do “fim da história” é
ao mesmo tempo pouco credível e estranhamente forte no senso comum, pelo
simples facto de que não se desenha no horizonte, para a maioria das pessoas,
uma alternativa credível ao modo de produção capitalista. Contudo, não há
otimismo hoje na elite financeira, económica e política que não embata de
frente com a dureza dos mais recentes dados sobre as brutais desigualdades que
se aprofundam nas nossas sociedades e que nos têm feito regredir várias
décadas.