31 outubro 2014

"Dr. Maçães ou: Como Aprendi a Deixar de me Preocupar e a Amar o TTIP"

Já sabíamos que o Secretário de Estado Bruno Maçães gosta muito do TTIP. Ficámos a saber que a deputada Francisca Almeida também gosta muito do TTIP. O primeiro até assina cartas onde exige a inclusão de mecanismos de resolução de litígios investidor-Estado no TTIP. A segunda faz de Dr. Pangloss. Venha o TTIP! Venha rapidamente! Porque TODA a gente concorda com o acordo e, se não concorda, é porque não leu o estudo do CEPR (não é EPR, Exmª. Dr.ª Francisca Almeida), essa ínclita instituição.

Pois, mas há quem tenha lido. E há quem tenha opiniões diferentes, baseadas em modelos com pressupostos diferentes, mais modestos e mais rigorosos. Quando se fazem estudos de impacto macroeconómico, convém que a econometria seja decente (e eu não percebo nada de econometria, mas consigo ver que alguém percebe. Basta que me explique qual o modelo e como o usa).

Vide http://www.ase.tufts.edu/gdae/Pubs/wp/14-03CapaldoTTIP.pdf

O mais importante, para começar, é isto:
Quantitative arguments in favor of TTIP come mostly from four widely cited econometric studies: Ecorys (2009), CEPR (2013), CEPII (2013) and Bertelsmann Stiftung (2013). (...) (p.5)
Methodologically, the similarities among the four studies are striking. While all use World Bank-style Computable General Equilibrium (CGE) models, the first two studies also use exactly the same CGE. The specific CGE they use is called the Global Trade Analysis Project (GTAP), developed by researchers at Purdue University. All but Bertelsmann use a version of the same database (again from GTAP). The limitations of CGE models as tools for assessments of trade reforms emerged during the liberalizations of the 1980s and 1990s . The main problem with these models is their assumption on the process leading to a new macroeconomic equilibrium after trade is liberalized. (...) (p.6)

30 outubro 2014

A luta voltou ao muro, a censura voltou à academia





Não é novidade para ninguém que as universidades são um palco de lutas pelo exercício e autoridade do poder. Desde 1088 que os então Studium Generale e mais tarde as universidades viviam uma relação ténue entre o poder eclesiástico e o poder político das monarquias. Mas é também na época moderna que se consolidaram instituições de ensino que nunca deixaram de ser permeáveis ao exercício do poder político e económico. Recordemos os casos de Ludwig Bernhard (1875-1935) que foi nomeado politicamente por decreto governamental para um cargo académico sem qualquer consulta aos órgãos científicos da universidade ou Robert Michels (1876-1936) impedido de se candidatar a professor por ser militante do Partido Social Democrata Alemão e não batizar os seus filhos.

Mas se olhando para a evolução democrática das nossas sociedades, estes casos denunciados por Max Weber em 1908 parecem de um tempo distante, o recente episódio de censura na revista cinquentenária Análise Social do Instituto de Ciências Sociais (ICS) mostra-nos como a liberdade académica consegue ser, ainda hoje, absolutamente permeável ao exercício do poder político, ideológico e conservador.

Na Analise Social, o investigador Ricardo Campos da Cemri – Universidade Aberta, iria publicar o ensaio visual “A luta voltou ao muro”, sobre a forma como a contestação social em Portugal voltou a ser feita nas paredes, em inúmeros graffitis que pela cidade de Lisboa questionam o poder financeiro, económico e político que tem governado Portugal e a Europa. O ensaio foi aceite e a revista foi editada e lançada na sua versão online. Contudo, o Diretor do ICS, José Luís Cardoso, deu ordens para que fossem destruídos os exemplares impressos da revista por considerar o ensaio de “mau gosto e uma ofensa a instituições e pessoas que não podia tolerar”. José Luís Cardoso considerou que tinha o direito de fazer do seu critério moral e ideológico, o critério científico de aceitação do ensaio. Assim, desautorizou diretamente o Diretor da Revista, João de Pina Cabral, um dos mais reputados antropólogos portugueses e europeus, para defender “o bom nome e a reputação institucional do ICS”.

29 outubro 2014

Em Coimbra, a propaganda praxista tem o apoio da universidade

Uma praxe normal em Coimbra: "caloiros" e "caloiras" metem-se numa fonte, num dia de frio e chuva, enquanto os praxistas observam tudo bem aconchegados nos seus trajes. Não sei em que é que expor novos alunos a uma possível pneumonia ajuda no seu processo de integração, mas talvez os praxistas saibam responder. A foto é do professor Elísio Estanque, que a partilhou no Facebook.

Recebi recentemente na minha caixa de correio eletrónico da Universidade de Coimbra, onde sou estudante, uma mensagem propagandística de um órgão da praxe. A mensagem vem do Conselho de Veteranos e foi reencaminhada pelo serviço de divulgação da UC.

O Conselho de Veteranos é formado por praxistas que se auto-nomearam guardiões da tradição. Não é uma associação com existência legal. Não é um grupo estudantil aberto à participação de todos os estudantes. Não é um órgão estudantil democraticamente eleito. Não existe nenhum motivo válido, portanto, para a UC divulgar uma mensagem do CV, atribuindo-lhe uma importância e legitimidade claramente indevida.

A luta voltou ao muro

Para quem ainda não conseguiu ver, aqui fica o texto e as imagens do último número da revista Análise Social agora retirado de circulação pelo diretor do ICS José Luís Cardoso por considerar que têm "linguagem ofensiva e de mau gosto". O Diretor da Revista, João de Pina Cabral, acusou o ato de censura. Para que ela não vingue, aqui fica o texto e as imagens do ensaio de Ricardo Campos que o diretor do ICS não quer publicar. 

"A escrita no muro  de forma não autorizada, vulgo graffito, é uma prática antiga. Há exemplos da sua existência que remontam  à antigui- dade clássica, na Roma antiga ou em Pompeia. Comum a estas formas de expressão de índole vernacular é a recorrente veia satírica e contestatária das mensagens. A afronta ao poder e aos bons costumes tem encontrado no muro e nas formas anónimas de comunicação um reduto altamente criativo. Especialmente relevantes são os graffiti executados no espaço público, disponíveis para uma incomensurável plateia. A falta de identificação de um destinatário particular torna esta forma de comunicação ainda mais curiosa, assemelhando-se às estratégias comunicativas da pro- paganda política e da publicidade. Ao invés destas, o graffiti é executado pelo cidadão comum, geralmente na obscuridade.

Na nossa história  mais recente alguns exemplos históricos  merecem destaque, pela forma como foram marcando os nossos imaginários. Aquilo que atualmente  encontramos  impresso nas nossas cidades não pode ser apartado dessa linhagem histórica. Joan Gari, académico catalão que escreveu uma excelente obra sobre a semiologia do graffiti contemporâneo, identifica basicamente duas tradições: a europeia e a norte-americana. A europeia teria por característica principal a escrita, em forma de máxima, de natureza poética, filosófica ou política. Exemplo máximo dessa tradição seria o tipo de graffiti que emergiu durante o Maio de 68 francês. Por contraste, a tradição norte-americana está fortemente vinculada à cultura de massas e à sua iconografia pop, sendo marcada por uma expressão eminentemente figurativa e imagética.

As cidades portuguesas, principalmente os grandes centros urbanos, foram invadidas nas últimas décadas pelo graffiti de tradição norte-americana. Composto por tags, throw-ups e murais figurativos de grandes dimensões, esta é uma manifestação visual que faz hoje parte da nossa paisagem. A globalização deste formato de graffiti significa que, disperso pelo planeta, encontramos  uma  linguagem comum, com mecanismos de produção e avaliação estética idênticos. A hegemonia desta expressão mural não nos deve fazer esquecer aquela que é a manifestação mural mais marcante da nossa história recente: o mural pós-revolucionário. O período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974 foi marcado por uma profusão de propaganda política que recorria ao muro como principal suporte. A iconografia de então, em que se destacavam Marx, Lenine ou Mao, acompanhados por representações colectivas do povo, do operariado ou campesinato, cedeu paulatinamente  o lugar aos politicamente inconsequentes tags.

Porém, nos últimos anos parece ter despontado nas paredes uma nova vontade de comunicação política. A grave crise económica e social que eclodiu em função das fortes medidas de austeridade impostas pela coligação de governo psd-cds, parece ter mobilizado os cidadãos para atuarem politicamente à margem dos mecanismos convencionais de expressão da vontade política. As grandes manifestações que se realizaram nos últimos anos, organizadas por associações e coletivos não-partidários são um bom exemplo disso. As paredes parecem, também elas, servir cada vez mais para expressar não apenas uma revolta difusa, mas para acicatar o poder político, satirizar a classe partidária e afrontar o status quo. Através de palavras, de slogans, de murais pintados a aerossol ou através da técnica do stencil, vários são os exemplos destas manifestações que pude recolher nas ruas de Lisboa. As imagens fotográficas que aqui se reproduzem visam, precisamente, retratar esta dinâmica de manifestação popular."

Ricardo Campos
Cemri-Universidade Aberta 

Ver ensaio visual aqui