15 maio 2015

Complemento salarial: o debate para uma esquerda decente

Porfírio Dias, membro do secretariado nacional do PS, retomou o debate à esquerda sobre a proposta de complemento salarial apresentada pelo documento dos economistas: "Esta prestação seria mais abrangente do que o subsídio de desemprego, que exclui a larga maioria dos desempregados. Este fenómeno de trabalhadores pobres preocupa o PS na ótica da defesa da dignidade do trabalho".

Mas de que complemento falamos, afinal? O documento dos economistas fala numa despesa anual de 350 milhões a partir de 2016. Segundo o INE, 483 mil trabalhadores não auferiram a mais do que 411 euros mensais (limiar da pobreza) no ano de 2013. Deste total de "trabalhadores pobres", 160 mil recebem menos de 310 euros (valor de referência do INE), dos quais 134 mil são trabalhadores dos serviços. A incidência do subemprego (part-time involuntário) ronda os 60% neste escalão. 



Destes números, projeta-se uma dotação média mensal de 60 euros por trabalhador, admitindo uma forte variação indexada ao nível de rendimentos e número de filhos. Acontece que estes trabalhadores já podem recorrer a dois tipos de apoios, o Rendimento Social de Inserção, atribuído a cidadãos, trabalhadores ou não, com rendimentos inferiores a 178,15€, e o subsídio social de desemprego, atribuído a trabalhadores que não alcançaram o tempo mínimo de descontos para aceder ao subsídio de desemprego ou que tenham esgotado o tempo desta prestação, não podendo ter por elemento do agregado familiar um rendimento mensal superior a 335,38 EUR (corresponde a 80% do valor do IAS).

O Partido Socialista e o Salário Mínimo


Há muito que não se via uma campanha assim. O documento dos economistas permitiu ao PS marcar a agenda política nestas últimas semanas, embora longe do impacto esperado e propalado pelo grupo de António Costa. A tática é, tal como descreve Pedro Silva Pereira, dupla: uma demarcação aparente das escolhas macroeconómicas da direita; uma ocupação do espaço à esquerda em matéria de combate à precariedade e defesa do trabalho.

Uma vez que o PS reafirmou nas respostas enviadas ao PSD que a "trajetória do défice e da dívida é consistente com uma consolidação orçamental sustentada e realista", sem justificar o irrealismo das projeções aqui apontado pelo Ricardo Paes Mamede, vexando assim o seu líder parlamentar e João Galamba, que há um ano defenderam publicamente um processo de reestruturação da dívida acima dos 60% do PIB, tratemos, pois, da questão do trabalho.

Salário Mínimo: um programa em cima do muro.

 O mesmo documento dos economistas, que é apresentado pelos dirigentes do PS como o marco inaugural de uma alternativa credível de governo, quando confrontado com a questão do salário mínimo, rapidamente é remetido para a qualidade de uma documento técnico de apoio, "este não é o programa eleitoral  do PS". Ora, a questão já nem é recordar a feroz oposição de Mário Centeno a uma política de salário mínimo, uma vez que essa contradição entre a direção do PS e os seus economistas já resultou num baixar da proposta como bandeira do PS. 

13 maio 2015

Voluntariado, um termo cândido da novilíngua

A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), organizadora da 85ª Feira do Livro de Lisboa, a ocorrer entre 28 de Maio e 14 de Junho, veio, à semelhança dos anos anteriores, pedir “voluntários” para o evento. Desta forma, dá-se a “oportunidade a 30 apaixonados do livro e da leitura de participarem na realização da maior festa do livro e da leitura”, que é uma tradução recente de “trabalho grátis”.

Editores e livreiros pagam, e não é pouco, para poderem expôr e vender na feira. Os participantes com apenas uma unidade normalizada (vulgo stand) pagam 1800 euros, mais 100 se quiserem ter mais 2 metros extra. Um segundo, terceiro e restantes stands estão ao preço de 2000 euros. Os stands personalizados custam 300 euros por metro linear e devem ter um mínimo de 6 metros. É um escândalo e, claro, é o que permite que a feira aconteça.

Claro que, para além disto, são necessárias pessoas que trabalhem fora dos stands das editoras. Estas, como as outras, garantem que a feira possa existir e, assim, fazer lucrar. Mesmo assim, sinal dos tempos, a organização da Feira do Livro acha que o pagamento não deve ter lugar na história.

Há uma novilíngua nestes tempos de capitalismo desenfreado. Nesta, disfarça-se de bom o que é mau, de preparação para o futuro aquilo que é ausência dele. As palavras têm poder, e o poder económico tem sabido manipulá-las.

Só num cenário destes é que o trabalho gratuito pode ser considerado uma oportunidade. Para mais, claro que tende a repetir-se: os jovens atropelam-se em estágios não remunerados e oferecem as suas forças de trabalho de bandeja porque, lá ao fundo, bem pequena, pode estar uma luz que lhes garanta que há mais qualquer coisa. O problema é que, regra geral, não há nada, uma vez que o aumento do lucro, ou a sua manutenção, estimula o outro lado.

O que a APEL faz agora não é novo: já o fez antes, apesar dos protestos, e, a continuar assim, não parará tão cedo. Para além de o insulto que é propor a alguém que trabalhe de graça, que ofereça a sua força de trabalho, sair absolutamente incólume, o lucro que daí advém não é amortecido com despesas em salários. Claro, fórmula de ouro para quem quer encher os bolsos seja de que forma for, não sentindo a preocupação em fazê-lo com os mínimos, porque, afinal, os tempos não obrigam a cumpri-los.

Só num tempo sem esperança se pode sugar tudo com a promessa ténue da possibilidade. Há quem lucre e encontre neste formato uma forma de continuar a fazê-lo sem grandes preocupações e a um ritmo exponencial. Fazendo-o, arrisca-se a que os jovens em Portugal jamais venham a saber o que é um trabalho remunerado.

Neste sentido, quem se submete a estas condições está ainda a compactuar com esta tentativa, quase ecuménica, de se usurpar trabalho ao garantir que este exista sem ser remunerado. Em 2013, ano em que a organização recebeu mais de cem candidaturas para trabalho gratuito, João Alvim, Presidente da APEL, veio considerar que este “voluntariado” era uma “mais-valia”. Pois, de facto, é de mais-valia que se trata, e que pena que seja assim.