05 setembro 2014

Bons Sons: uma forma diferente de ser festival



Como muito bem alertavam os movimentos alterglobais dos anos 90 e 2000, uma das características mais importantes do desenvolvimento do capitalismo na transição no milénio era a mercantilização dos vários domínios do espaço público e da vida das sociedades. Na escola, na rua, na cultura, na produção científica, no Estado e em tantos outros domínios, a pressão da mercantilização dos bens, das pessoas e dos serviços deu um novo fôlego a que os interesses do mercado colonizassem aquilo a que Habermas chamava o “mundo da vida”.

Foi também assim nos festivais de música em Portugal. Praticamente todos os nomes dos festivais passaram a ter os nomes das marcas que os patrocinam. A Optimus e a NOS tomaram o Alive, a Vodafone o Paredes de Coura ou o Primavera Sounds System, a TMN o Sudoeste, a EDP o Cascais Cool Jazz Fest e por aí fora. Mas também nos próprios recintos, os restaurantes são da Pizza Hut ou da Burger King e em todo o lado há material publicitário. E este respeito, não se admira que na generalidade dos festivais o critério de escolha dos artistas seja essencialmente o critério do que o mercado decide que em cada momento as pessoas devem ouvir.

Mas se esta é a tendência hegemónica, vale a pena lembrar que um pouco pelo país fora se vão multiplicando experiências de festivais e iniciativas que escolhem não depender do mercado para ter sucesso. Queria falar-vos de uma delas, o Festival Bons Sons. Acontece de dois em dois anos na aldeia de Cem Soldos em Tomar e toda a aldeia é mobilizada na organização do festival. Há concertos na igreja, na eira, no andro, na praça principal. A população organiza os restaurantes, os espaços e tem as casas abertas. Os lucros revertem para a comunidade e este ano servirão para a construção de residências artísticas e de um lar de idosos. O cartaz percorre a música portuguesa nas suas várias dimensões. Pelo festival já passaram veteranos como o Vitorino, Sérgio Godinho, Fausto, António Chainho ou a Naifa, novos grupos como os PAUS, os Linda Martini, The Legendary Tiger Man, o Noiserv, os Torto ou as Anarchicks, o novo fado de Gisela João ou Ricardo Ribeiro, o rap da Capicua, a mundividência de Terrakota ou Dead Combo, e tantos músicos a solo como o Peixe, Nuno Prata, Norberto Lobo, Filho da Mãe, António Zambujo, Samuel Úria e muitos outros.

A vivência da aldeia e da comunidade, o respeito pela diversidade da música portuguesa contemporânea, a autonomia em relação ao mercado e a ousadia de um cartaz que todos os anos nos mostra músicos novos, conferem ao Bons Sons um lugar único nos festivais portugueses. Espero que o futuro permita manter essa cultura, essa diferença e esse arrojo. 

31 agosto 2014

explicar a vida a um padre

Foi ontem publicado um artigo no i para lá do inqualificável. O artigo contém uma série de erros de análise e uma visão distorcida do mundo, principalmente na divisão que básica que faz, entre homens e mulheres, condenando o feminismo e achando que o machismo é a coisa mais normal do mundo – e discriminado, coitado. Um gajo já não pode ser machista à vontade que vem logo gente mandar vir. Vejamos:

“Não é pacífica a relação entre homens e mulheres, pelo menos desde Adão e Eva. A crer no relato bíblico, foi a mulher que obrigou o homem a comer o fruto proibido e, desde então, elas nunca mais deixaram de mandar. Aliás, é por isso que nos fazem crer que vivemos numa sociedade machista…” Na verdade, tudo começou com um macaco. A história do Éden e da maçã é, de facto, o reflexo de uma sociedade machista: a mulher passa a ser vista como a tentação do ser humano (vá, o homem). Neste episódio, Deus é ainda uma besta, convém não isentá-lo da história: expulsa ambos do paraíso (meu Marx, é assim tão grave que uma pessoa queira experimentar uma maçã?!), deixa-os a divagar pelo mundo, sem comida, e ainda tem a distinta lata de provocar dores de parto a TODAS as mulheres do mundo, culpadas por serem o símbolo da tentação. Convém ainda dizer que, uns milénios mais tarde, Deus se lixou bem, já que foi inventada a anestesia epidural (embrulha, puto). Mais vale acreditarmos mesmo na história do macaco, só para não parecer que estamos a gozar com os poderes divinos.


Se não, vejamos. Um homem que considera as mulheres menos aptas para o exercício de um cargo ou profissão é, obviamente, machista. Mas, se uma senhora tecer a mesma opinião em relação aos cavalheiros, ninguém a acusará de feminista que, por sinal, não é o contrário de machista, nem a sua versão feminina, que não há. Com efeito, ser machista é sempre um insulto, algo política e socialmente incorrecto, porque pressupõe uma atitude prepotente e desrespeitadora dos legítimos direitos do outro sexo. Mas ser feminista é uma virtude, porque se entende que é nobre defender os direitos das minorias ou dos mais necessitados, embora as mulheres não sejam propriamente nenhuma minoria, nem muito menos seres descapacitados.” Vários erros: de facto, existe uma “versão feminina” de machista, que é “femista”. De facto também, “ser machista é sempre um insulto, algo política e socialmente incorrecto”. E ainda bem. Mal seria se quem oprime metade da humanidade por características físicas fosse louvado. Continuemos: “ser feminista é uma virtude”, claro, já que “se entende que é nobre defender os direitos”. Constate-se ainda que não é bem pela nobreza que o feminismo existe, é mesmo por uma questão de necessidade. Mas depois o autor do texto alcança a luz: “embora as mulheres não sejam propriamente nenhuma minoria, nem muito menos seres descapacitados”. Exactamente, daí que seja tão grave que, sendo maioria, sejamos tratadas como minoria e discriminadas.


“Se uma mulher, que injustamente discrimina os homens, não é machista, uma vez que esta designação é exclusivamente masculina, o que é?! A verdade é que nem sequer há um termo para designar com propriedade este eventual machismo feminino!” Há. Está no parágrafo anterior.


“E, se um sujeito defender os direitos políticos e sociais das senhoras, é feminista?!” Sim.


“Não parece, porque, como já se disse, esta honrosa designação é exclusiva das mulheres.” Em que dicionário é que isso está? Estas/es lexicógrafas/os andam a dormir...


“Logo, nenhuma mulher pode ser tão má quanto são maus os machistas, nem nenhum homem pode ser tão bom como as feministas.” Pode. Mas há aqui uma série de erros no género dos artigos. Como não sou linguista, não vou deter-me nisto.


“Em tese, também poderia haver um machismo bom e um feminismo mau.” Nem em tese nem na prática. O machismo parte sempre da ideia de subjugação, o feminismo da igualdade. É uma luta dura.


“De facto, seria louvável aquele acto de afirmação do sexo masculino que não infamasse o seu contrário, como deveria ser censurável aquele feminismo que fosse depreciativo do sexo masculino. Deveria ser assim, mas não é. Porquê? Não quero ser machista, mas…” Às vezes, as circunstâncias da vida não nos dão tudo o que queremos. Eu, por exemplo, não queria estar doente e eis que tenho antibióticos para tomar. Também não queria ler parvoíces na Internet e eis que me deparo com o texto do Gonçalo Portocarrero de Almada.
“Muitos privilégios da condição feminina não são extensivos aos homens: a consorte do rei é rainha, como as plebeias Letícia de Espanha, Sílvia da Suécia e Sónia da Noruega. Mas o marido da rainha só é príncipe, como Filipe de Edimburgo, Bernardo da Holanda ou Frederico da Dinamarca, mesmo quando já eram príncipes pelo seu nascimento, como é o caso dos dois primeiros. A mulher de um presidente da República é a primeira dama, mas o marido de uma chefe de Estado não é coisa nenhuma. Será justa esta discriminação?! Será machismo exigir que o marido da rainha seja rei e o cônjuge da presidente seja ‘o primeiro cavalheiro’?!” Tem razão: mais vale abolirmos mesmo a monarquia e o casamento e acabar com isto tudo. Excepto o casamento gay. Com esse não existe este tipo de problemas.


Tempos atrás, combateu-se a desproporção entre homens e mulheres em certas profissões, criando-se quotas para o acesso feminino a esses postos de trabalho. Hoje verifica-se análoga disparidade, mas em sentido contrário: já há mais médicas e juízas, por exemplo. Contudo, ninguém defende, que eu saiba, lugares cativos para machos...” Não é que “os machos” tenham de lutar contra preconceitos de género, não é? Mas convém ainda ver o número de “machos” e de “fêmeas” (meu Marx, Gonçalo, temos de ter assim boçais e animais?) nos lugares de poder e espreitar ainda as tabelas salariais de cada um. (E violência doméstica? Não haverá números por aí sobre isso?)


Talvez seja hora de abandonar os preconceitos feministas, mas sem ressuscitar serôdios machismos ultramontanos.” Quais preconceitos feministas?

Impor restrições, por razão do sexo, no acesso aos cargos políticos, ou outros, é perverter a ordem da justiça, porque o único critério válido para o exercício de funções, públicas ou privadas, deve ser o mérito dos candidatos, qualquer que seja o seu sexo.” Ou então é tentar alcançar a justiça, dando a volta a certos mecanismos sociais que desvalorizam todas as mulheres do mundo (!).


Não faz sentido que ninguém seja preferido, ou preterido, por esse motivo. Na realidade, seria humilhante que alguém ocupasse um determinado cargo, só por ser mulher, ou homem, porque, mais do que o sexo, vale aquilo que cada um é.” Ou seja, uma mulher que ocupe um cargo só o faz porque surgiu esta lei iluminada que lhe dá que fazer durante uns tempos, porque, na realidade, sendo mulher, não tem capacidade para tal. Ah, está bem.


“Não é que eu seja machista mas, pelo sim pelo não, dou graças a Deus por me ter chamado para a única profissão que elas nunca poderão exercer! Mas tão excelsa é a condição feminina que, quando chegou a plenitude do tempo, foi uma mulher que deu à luz o próprio Deus! (Gal 4, 4).” Peço desculpa, mas este último parágrafo já não consigo comentar. É demasiado tontinho.