Como muito bem alertavam os movimentos
alterglobais dos anos 90 e 2000, uma das características mais importantes do
desenvolvimento do capitalismo na transição no milénio era a mercantilização
dos vários domínios do espaço público e da vida das sociedades. Na escola, na
rua, na cultura, na produção científica, no Estado e em tantos outros domínios,
a pressão da mercantilização dos bens, das pessoas e dos serviços deu um novo
fôlego a que os interesses do mercado colonizassem aquilo a que Habermas chamava o “mundo da vida”.
Foi também assim nos festivais de
música em Portugal. Praticamente todos os nomes dos festivais passaram a ter os
nomes das marcas que os patrocinam. A Optimus e a NOS tomaram o Alive, a
Vodafone o Paredes de Coura ou o Primavera Sounds System, a TMN o Sudoeste, a
EDP o Cascais Cool Jazz Fest e por aí fora. Mas também nos próprios recintos,
os restaurantes são da Pizza Hut ou da Burger King e em todo o lado há material
publicitário. E este respeito, não se admira que na generalidade dos festivais
o critério de escolha dos artistas seja essencialmente o critério do que o
mercado decide que em cada momento as pessoas devem ouvir.
Mas se esta é a tendência hegemónica,
vale a pena lembrar que um pouco pelo país fora se vão multiplicando
experiências de festivais e iniciativas que escolhem não depender do mercado
para ter sucesso. Queria falar-vos de uma delas, o Festival Bons Sons. Acontece
de dois em dois anos na aldeia de Cem Soldos em Tomar e toda a aldeia é
mobilizada na organização do festival. Há concertos na igreja, na eira, no
andro, na praça principal. A população organiza os restaurantes, os espaços e
tem as casas abertas. Os lucros revertem para a comunidade e este ano servirão para
a construção de residências artísticas e de um lar de idosos. O cartaz percorre
a música portuguesa nas suas várias dimensões. Pelo festival já passaram
veteranos como o Vitorino, Sérgio Godinho, Fausto, António Chainho ou a Naifa, novos
grupos como os PAUS, os Linda Martini, The Legendary Tiger Man, o Noiserv, os
Torto ou as Anarchicks, o novo fado de Gisela João ou Ricardo Ribeiro, o rap da
Capicua, a mundividência de Terrakota ou Dead Combo, e tantos músicos a solo
como o Peixe, Nuno Prata, Norberto Lobo, Filho da Mãe, António Zambujo, Samuel
Úria e muitos outros.
A vivência da aldeia e da comunidade, o respeito pela diversidade da música portuguesa contemporânea, a autonomia em relação ao mercado e a ousadia de um cartaz que todos os anos nos mostra músicos novos, conferem ao Bons Sons um lugar único nos festivais portugueses. Espero que o futuro permita manter essa cultura, essa diferença e esse arrojo.
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