Será possível? A tragédia do Charlie Hebdo reavivou o debate sobre os limites à liberdade de expressão, que muitos trataram de empurrar para o pantanoso terreno do "choque de civilizações". Mas primeiro, ao humor, cidadãos. Muito se tem falado sobre o conteúdo humorístico do Charlie Hebdo, do seu exagero, da sua indecorosa via para o despropósito. A defesa da alforria do conteúdo, abstraindo-a ao nível de um direito universal, o direito à liberdade de expressão, é uma necessidade que devemos acarinhar, mas não basta. O que importa discutir sobre os limites do humor, ou a sua ausência, é como essa expressão da inteligência humana estabelece-se na disputa dos espaços e tempos sociais.
Se olharmos a longa tradição do caricaturismo francês, percebemos que esse tipo de humor conquistou um espaço próprio na cena política do país, firmando-se, sobretudo, na esfera jornalística. O mesmo acontecerá, em menor ou maior escala, com outros tipos de humor escrito - no mundo lusófono a crónica será a forma principal. Mas ler é perceber. Quando abrimos o suplemento de humor de um jornal ou assistimos a um filme dos irmãos Coen, sabemos o que nos espera, mesmo sem conhecer o seu conteúdo. Esperamos um tempo de inversão do óbvio, um contrasenso da nossa realidade quotidiana expresso pelo exagero, o espalhafato ou a incoerência fina.
Esse tempo, na maioria das vezes, está limitado ao decorrer da ação da leitura ou visualização, que escolhemos de forma individual ou colectiva. As festas da escola, nas quais se pode imitar de forma caricatural os professores no fim da peça de teatro é um bom exemplo dessa demarcação do tempo - depois do tempo de estudo e de respeito pela hierarquia, o tempo do deboche.