01 agosto 2014

Quem é, afinal, Carlos Moedas?





Perdemos o Durão mas vamos ter Carlos Moedas, Comissário empossado para glória da direita portuguesa. Mas afinal, quem é este Secretário de Estado que sobe agora as escadas do poder imperial europeu?

De aprendiz de privatizador a funcionário do Goldman Sachs

Carlos Moedas afirmou numa entrevista que os melhores anos da sua vida foram passados na Harvard Business School. O ninho de gestores da elite mundial, para onde foi depois de uma passagem pela gigante francesa Suez-Lyonnaise des Eaux, empresa que abocanhou boa parte das privatizações das águas públicas na Europa, sudeste asiático e América Latina. A passagem por Boston, em 2001, rendeu-lhe as boas graças do Goldman Sachs, o mesmo Goldman Sachs que já nessa altura emitia lixo financeiro a partir da especulação imobiliária, contribuindo com a sua parcela da crise financeira de 2007/2008. Carlos Moedas rumou depois a Londres para representar o banco em “aquisições e fusões na área imobiliária”, António Borges foi seu conselheiro e companheiro de jornada. O bom trabalho valeu-lhe a transferência para o Eurohypo Investment Bank (Grupo Deutsche Bank), onde contribuiu com o seu saber na aquisição da imobiliária sueca Tornet pelo Grupo Lehman Brothers, o mesmo Lehman Brothers que faliu em 2007, fazendo estourar a bolha do imobiliário.

O óbvio

Vítor Gaspar foi ministro e tinha como função negociar a primeira fase do programa de ajustamento com o FMI. Saiu do governo e foi dirigir o departamento de assuntos orçamentais do FMI. Carlos Moedas foi Secretário de Estado e participou em todas as negociações, entre outras instituições, com a Comissão Europeia (já o tinha feito antes, em 2011, enquanto representante do PSD). Confirma-se agora que sai do governo para integrar a Comissão Europeia.

Esta é a marca do tempo: a direita portuguesa desistiu de fingir que existe um processo negocial com as instituições europeias. Porque, se houvesse negociação, seria impossível passar diretamente de uma instituição que defende os interesses do país para uma instituição que defende os interesses dos credores. Tempos estranhos, estes, em que se tornou necessário dizer o óbvio.

28 julho 2014

"Gaza: é uma guerra contra as crianças?" - reportagem de Jon Snow


Foi o Afonso que me chamou à atenção para esta reportagem de há 4 dias atrás que explica tudo sobre o que se está a passar em Gaza. Na altura a IDF tinha feito mais de 700 mortos, agora já morreram mais de mil pessoas.
De novo, para ninguém se esquecer: não é uma guerra, não é um conflito, é um massacre.

Salgado e os capitalistas forçados

As perguntas são muitas e crescerão. Durante anos, falámos, nos corredores e nem sempre em voz alta, da lula-vampiro à portuguesa. Agora, toda a gente sabe. Agora, toda a gente sabia. Toda a gente sabe que o GES é uma sanguessuga. Toda a gente sabia que ia rebentar. E quase toda a gente acha ser bom para o regime. Um processo de destruição criativa que só poderá ter consequências positivas para a economia e para a sociedade. Claro, toda a gente sabia, e todos podemos lavar a consciência, as mãos e o nariz.

A sede de sangue continua; a sede de justiça, essa, parece definitivamente saciada. O problema dos historiadores é este: ter a memória longa e a atenção permanentemente sintonizada com a longa duração. Ler Braudel e companhia. Uma companhia possível é um tipo chamado Will Davies. Tem um blogue chamado Potlatch. Que vale a pena seguir. Porque faz perguntas difíceis. Uma delas, sempre implícita, é esta: quando é que a esquerda acaba com a conversa fiada dos capitalistas forçados? Isto é: quando é que a esquerda acaba com a ilusão de que toda a gente leu este texto de 1754:

Le premier qui, ayant enclos un terrain, s'avisa de dire : Ceci est à moi, et trouva des gens assez simples pour le croire, fut le vrai fondateur de la société civile. Que de crimes, de guerres, de meurtres, que de misères et d'horreurs n'eût point épargnés au genre humain celui qui, arrachant les pieux ou comblant le fossé, eût crié à ses semblables : Gardez-vous d'écouter cet imposteur ; vous êtes perdus, si vous oubliez que les fruits sont à tous, et que la terre n'est à personne.
 Toda a gente leu, toda a gente sabe, toda a gente reprimiu. Mas toda a gente sabe e toda a gente tem vontade de voltar atrás no tempo e ser o herói capaz de ver a loucura prestes a ser inaugurada. Este é um dos equívocos. O que me leva a este poste do tal Davies.

One dissatisfying aspect of the new movements, as welcome as they are in so many respects, is that they depend on the notion that finance capitalism was a secret stitch-up between governments and finance, that occurred behind closed doors, as a conspiracy. But there are many ways in which it happened before our eyes. (...)  Relaunching the left on the basis of majoritarianism and percentiles works very well rhetorically, and keeps crucial pressure on the banks themselves. But as the New Left argued, majorities also have skeletons in their closets and questions to answer, such as how they have been treating minorities and the politically powerless, and how enthusiastically they collaborated with the powerful.
Esta é a minha reacção ao ouvir falar de alguns partidos/movimentos/colectivos/grupos (às tantas, já não sei o que dizer sem achar que posso ofender alguém) que insistem na mitologia do capitalista forçado - que só se ganha agência ex post, depois da miragem do crédito ter rebentado na cara. A satisfação colectiva com a prisão do Salgado - como se isso fosse uma expressão clara da justiça, como aparelho e conceito - leva-me a pensar nestas coisas. Encontrar bodes expiatórios, ainda por cima com ar presunçoso e claramente investido da vontade de transformar a sociedade portuguesa numa imensa fábrica de extracção de riqueza, é fácil. Mais difícil é perceber por que razão o BES não fechou há mais tempo, ou por que razão é um dos bancos mais solidamente implantados, não apenas no sistemas financeiro, de que é um elemento constitutivo, mas na vida quotidiana portuguesa, Talvez não seja tão difícil se se admitir, de uma vez por todas, que a lógica, o mérito e a doxa da propriedade privada continuam a não ser objecto de discussão extensiva porque são coextensivos à nossa existência colectiva. E talvez se torne menos difícil se se admitir que toda a gente - incluindo as pessoas iluminadas e espertinhas com tempo para ler Rousseau e citar blogues de académicos ingleses (se não era claro, falo de mim) se limitou a aceitar o evangelho da propriedade privada; comeu-o, fê-lo seu e propagou-o, algumas vezes de forma reflexiva e outras menos, permitindo, com isso, a criação das condições sistémicas que possibilitam a implantação de figuras como Salgado. O Eurostat diz que estamos cansados e tristes. Sim, de facto. O HFCS, do Banco Central Europeu, diz que o endividamento privado português é uma característica da classe média-alta e alta. Sim, pode ser. Mas o credo da propriedade privada, talvez a maior alucinação colectiva dos três últimos séculos, nunca vem à baila. Alguém acredita que as hipotecas e os créditos multi-opções surgiram apenas como mecanismos predatórios e medraram apenas porque uma gigantesca conspiração do nexo governo-finança o permitiu? Essa explicação cheira a bafio. Onde estavam os 99% antes da crise? Falsa consciência? Como é que se criam estratégias emancipatórias com esse salvo-conduto paternalista, que não passa de um nó górdio conveniente para quem gosta de inventar elefantes brancos e obstáculos inultrapassáveis?

Existiram, certamente, algumas pessoas obrigadas/coagidas a contrair crédito. Mas é implausível que todas o tenham sido. E essa admissão de agência é um dos passos necessários para garantir que as dinastias (de banqueiros ou outros) deixam de existir.