A
historiadora Maria de Fátima Bonifácio ficou incomodada pela forma como Manuel
Carvalho da Silva, coordenador do Observatório das Crises
e Alternativas, “explicou pacientemente” a João Miguel
Tavares, às suas tropas e aos seus superiores, como é que o Instituto Nacional
de Estatística (INE) calcula a taxa de desemprego do país. E perante esse
incómodo, decidiu dedicar-lhe uma prosa
dificilmente qualificável no Público desta sexta-feira, que ilustra bem a forma
como a irritação política facilmente se transforma em cegueira e
irracionalidade.
Chamou
a tal prosa “Uma ou duas coisas que Carvalho da Silva devia saber” e nela
começa por contestar o facto de Carvalho da Silva defender que se pode
considerar como desempregados os indivíduos que o INE classifica como “inactivos
desencorajados”. Para o INE
um inactivo desencorajado é um “indivíduo com idade mínima de 15 anos que, no
período de referência, não tem trabalho remunerado nem qualquer outro, pretende
trabalhar, está ou não disponível para trabalhar num trabalho remunerado ou
não, mas que não fez diligências no período de referência para encontrar
trabalho, com os seguintes motivos para o desencorajamento: considera não ter
idade apropriada, considera não ter instrução suficiente, não sabe como
procurar, acha que não vale a pena procurar ou acha que não há empregos
disponíveis".
Perante
este argumento, Fátima Bonifácio diz que Carvalho da Silva considera como
“desempregado” alguém que quer simplesmente “passar as tardes a tomar chá com a
Kiki Espírito Santo". É um argumento tão caricatural quanto ridículo. A
ilustre historiadora esqueceu-se de ler na definição do INE que um “inativo
desencorajado” é um indivíduo que “pretende trabalhar” e não que pretende
propriamente passar a tarde a beber chá. O ódio político por vezes causa
cegueira. Desta vez foi uma cegueira literal. Na excitação de apanhar um deslize
que lhe permitisse acusar Carvalho da Silva de defender preguiçosos e laxistas,
Fátima Bonifácio esqueceu-se de ler a própria frase que cita no seu texto. Exigir-se-ia
melhores competências de leitura para alguém que enche a boca a falar do “ethos académico”.
Para
que conste a Bonifácio e a quem mais se enfurece com Carvalho da Silva, para o
INE (ver conceitos aqui,
pp. 48) só cabe na categoria de desempregado quem se encontre cumulativamente
nestas situações: (a) não tenha um trabalho remunerado ou não-remunerado; (b)
esteja disponível para um trabalho remunerado ou não-remunerado; (c) tenha
procurado um trabalho remunerado ou não-remunerado na semana de referência do
inquérito ou nas três anteriores. Isto é, quem na semana de referência do
inquérito tenha uma ocupação não-remunerada, mesmo que seja só uma hora nessa
semana, e mesmo que seja passar a roupa a um familiar, não é considerada
desempregada. Quem esteja disponível para um trabalho remunerado mas não esteja
disponível para aceitar um trabalho não-remunerado não é considerada como
desempregada. Quem está sem trabalho mas a última vez que foi ao Centro de
Emprego foi há um mês e meio, não é considerada desempregada.
Fátima
Bonifácio introduz ainda um debate a martelo sobre o que considera a
“indefinição do estatuto epistemológico das ciências sociais” e sobre a
“extravagância de áreas disciplinares sem estatuto disciplinar” e que têm
levado a militância para a universidade, entre as quais os estudos de género ou
os queer studies. Não valia a pena
tamanha desonestidade intelectual. Qual é o argumento? Cito: “A fatal
indefinição do estatuto epistemológico das ciências sociais permitiu e
incentivou a transformação da Universidade num local de catequização
ideológica”. E que nesse contexto, “um conjunto de extravagâncias sem estatuto
disciplinar definido transformaram a Universidade num espaço de militância,
subversão e destruição do ethos
académico”
Sobre
a indefinição do estatuto epistemológico das ciências sociais, Fátima Bonifácio
está um pouco mais de 100 anos atrasada no tempo. Mas vale a pena lembrar que o
estatuto epistemológico das ciências sociais se estruturou em torno da
capacidade destas convocarem e desenvolver análises críticas que, duvidando dos
discursos do poder, fossem propensas a explicar a realidade social recusando
ideias feitas e argumento de autoridade. Foi isso que Carvalho da Silva e os
investigadores do CES fizeram. E a prova de que o fizeram bem foi a irritação
que provocaram num conjunto de escribas muito bem identificados politicamente.
Outra
coisa bem distinta é o argumento de que a universidade é um local de
catequização ideológica. Esse eu subscrevo. O neoliberalismo transformou as
universidades a um ritmo impressionante e a catequização acrítica espalhou-se
que nem uma mancha de óleo. De tal forma que quando alguém na academia ousa
desenvolver exercício crítico em relação ao poder, logo vêm os seus humildes
servos pedir cabeças e disparar tiros de pólvora seca contra os académicos subversivos
e infames. O problema é que às vezes os tiros vão parar aos próprios pés.
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