16 julho 2015

A guerra de gerações segundo Raquel Varela

A Raquel Varela tem contribuído, nos últimos anos, para a desconstrução de alguns mitos austeritários, batendo-se por causas importantes, como a Ciência. É, por isso, com interesse que leio a sua análise sobre as causas da baixa intensidade com que se desenvolve o confronto político em Portugal. Segundo a autora, como se pode ler no excerto acima, uma das causas para essa apatia reside na "geração de 20 ou 30 anos", que sofrendo os suplícios da emigração forçada não tem "uma palavra a dizer sobre a política em Portugal". A isso somar-se-ia a condição de desligamento do movimento sindical e partidário, revelando um "confrangedor analfabetismo político de toda uma geração".

Questiono-me, à partida, se a generalização de uma população sob o escopo do factor etário é, de facto, a melhor via para uma análise da mobilização política em Portugal. Há um debate sociológico que tratou precisamente desta questão. Pierre Bourdieu concedeu, em 1978, uma entrevista transformada em ensaio intitulado "A juventude é apenas uma palavra". Na sua leitura, Bourdieu avançava três teses: (i) a fronteira entre a juventude e a velhice é um objeto de disputa em todas as sociedades, uma vez que essas condições sempre foram acompanhadas de um status diferenciado e de uma desigualdade no acesso a determinados tipos de capital; (ii) não existe apenas "uma juventude", na generalização abusiva do termo. Em todos os domínios da existência - moradia, trabalho, relação familiar, práticas sociais, pertença de classe - as diferenças que atravessam os indivíduos da mesma faixa etária são imensas. "Dito de outra maneira, é por um formidável abuso de linguagem que se pode subsumir, no mesmo conceito, universos sociais que praticamente não possuem nada em comum."; (iii) numa sociedade de classes, as máquinas de reprodução social, como a escola e o trabalho, importam para a compreensão da selectividade social que condiciona indivíduos da mesma geração.

Bourdieu procurava, com isto, responder ao discurso, segundo ele altamente "manipulável", que situava os conflitos sociais num plano exclusivamente geracional. Autores como Margulis (1996), por exemplo, chegam mesmo a falar na juventude como "vanguarda portadora de transformações", valorizando o seu papel como ator coletivo. E conhecemos já a imensa literatura que trata das "práticas culturais" juvenis e o seu lugar nesta análise. Mas a questão não será tanto assumir a existência de objetos de análise em cujo a pertença etária é um factor relevante - lembremos o enquadramento dado pelo Estado aos "jovens em situação de risco" ou todo o debate em torno da "delinquência juvenil" - mas antes assumir, como defende Machado Pais, a sua problematização em termos de questões sociológicas. E é nesse ponto que, uma vez mais, a análise da Raquel Varela abre margem para a discordância.

Segundo Varela, a apatia geracional mencionada teria como causa principal a associação de uma precariedade laboral, cuja incidência é muito superior entre os mais jovens, e uma prática de
solidariedade familiar crescente nas últimas duas décadas, "os pais estão há duas décadas a pagar parte dos salários dos filhos e o conflito da fábrica, da empresa, ou com o Estado, que lhes paga 500 euros passou para o confortável colo dos pais que asseguram mais 500 euros mantendo-os em casa".

Convenhamos que é uma conclusão ousada. Desde logo porque não se percebe se Varela entende por conflito a capacidade de organização coletiva e contestação. Michael Burawoy, por exemplo, explana no seu livro Manufacturing Consent (1979) precisamente sobre as causas para que o conflito permanente do chão da fábrica, inerente ao processo laboral capitalista, não dê passagem para uma organização colectiva, desde logo a própria organização dos processos de trabalho. Outros autores estudaram as técnicas de controlo aplicadas na gestão do processos laborais na área dos serviços, que são mais complexas precisamente por ser maior a margem de conflito (basta lembrar os trabalhadores que tratam diretamente com os cliente finais, e por isso são submetidos ao controle restrito das suas decisões).

Mas mesmo assumindo a simplificação do conceito, não se percebe ainda por que vias esse conflito "passa" para o "confortável colo dos pais". Raquel Varela completa, afirmando que "a reivindicação por salários decentes que só é possível com luta política passou para um encosto ao núcleo familiar - os pais sem saber estavam a pagar a infantilização dos filhos". Dispensando a crítica à adjectivação empregada, seria interessante sabermos que estudo em Portugal aponta para uma percepção de "conforto" associada à permanência tardia em casa dos pais por parte dos jovens. Que daí Varela assinale uma transferência do conflito para o plano familiar como causa para a sua diminuição no plano sindical e político figura como uma perigosa aproximação ao discurso da "guerra de gerações".

Em Portugal, Helena Matos e José Manuel Fernandes têm sido os embaixadores desse discurso. No seu livro Este país não é para jovens (2014), estes autores adaptam a narrativa que justifica a falta de oportunidades e a precariedade dos mais jovens com a existência dos direitos dos mais velhos. Assim seria no mercado de trabalho, que protege os trabalhadores mais velhos do despedimento e lança os mais jovens nos contratos a prazo; no sistema de pensões, que transfere recursos valiosos para os mais velhos; e na dívida, herança pesada para as novas gerações.

Esta abordagem, sabemos, não é nova nem necessariamente pessimista. Piketty (2014), por exemplo, relembra que uma das crenças otimistas das sociedades modernas é a "ideia segundo a qual o prolongamento da longevidade levaria mecanicamente à substituição da «luta de classes» pela «luta de gerações» (forma de luta que apresenta ainda assim menos clivagens numa sociedade, dado que cada um é em momentos diferentes jovem e velho). Por outras palavras, a acumulação e a distribuição dos patrimónios seriam hoje dominadas não já por um confronto implacável entre dinastias de herdeiros e dinastias dos que apenas possuem o produto do seu trabalho, mas antes por uma lógica de poupança ligada aos ciclos de vida."

O problemas destas análises, assim como a da Raquel Varela, é que falham em explicar a participação de pessoas que, sendo jovens, se constituem em ativistas e protagonistas de um confronto organizado. A tese da apatia geracional não explica como foi possível a construção de manifestações com as características do "Que se Lixe a troika", em que muitos dos participantes eram adultos que ainda estão retidos em casa dos pais; que os enfermeiros da "Linha 24", na sua maioria trabalhadores jovens, organizassem, quase sem apoio, uma greve com grande impacto; que os movimento de precários e os organizadores de uma manifestação que se chamava precisamente "geração à rasca" tenham tido a capacidade de disputar o descontentamento difuso e transformá-lo numa inédita Iniciativa Legislativa de Cidadãos na luta contra o abuso das ETT e dos falsos recibos verdes; que os entregadores da Pizza Hut, mais  um caso de jovens trabalhadores, tenham organizado uma greve vitoriosa com o seu sindicato. E outros tantos exemplos existem. E não explica porque em cada um destes exemplos, outras pertenças se sobrepuseram ao factor etário, tornando impossível uma categorização absoluta destes sujeitos.

A organização dos trabalhadores precários, excluídos das relações salariais estáveis, exige a mobilização de outra abordagem teórica que não esta. Ela existe, está à nossa disposição e devemos-lhe a fidelidade da leitura, da compreensão e da ação.








    
  


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