29 janeiro 2014

Uma lição de amor

Em Uma vida à sua frente (Sextante, 2010), Émile Ajar, ou melhor, Romain Gary, dá-nos a conhecer o pequeno Momo (abreviatura de Mohammed) e permite-nos acompanhar uma pequena parte da sua vida, porventura, os momentos mais difíceis e marcantes por que passou. Contudo, o possível esperava-o para o insuflar de esperança e ficamos também marcados. Pelo encanto especial de uma ingenuidade cheia de verdade e experiência de vida como a de Momo, pela vida dura de Madame Rosa cuja sorte a salvou de um mal maior para viver sempre males menores, pela impressionante lição de amor que, apesar de aquecer o coração, não nos livra de uma certa suspeita sobre os sentidos da vida.

O enredo deste livro é então a história de Mohammed, um rapaz árabe de 14 anos, órfão, que vive no bairro de Belleville, em Paris, com Madame Rosa, uma judia, prostituta reformada e sobrevivente de Auschwitz que cuida agora dos filhos de jovens trabalhadoras do sexo, tal como Momo. Os dois travam uma luta comum pela sua sobrevivência e quando o corpo e a mente de Madame Rosa começam a falhar, torna-se claro que Momo é única pessoa que ela deixa no mundo, nunca a abandonando e administrando também as ajudas preciosas dos vizinhos e as suas amizades tão genuínas como aparentemente impossíveis num bairro muito pobre mas não desabrigado de relações humanas. Apesar da sua infância perdida - «Nunca fui bebé, tinha sempre outras preocupações na cabeça» -, Momo acompanhará sempre Madame Rosa que se recusará a ser hospitalizada. Ficou sempre com ela, enfrentando com ela os seus medos finais e a preparação para a sua última e mais difícil viagem. O seu amor por ela era generoso e incondicional: «Eu teria prometido qualquer coisa à Madame Rosa para fazê-la feliz, porque mesmo quando se é muito velho a felicidade ainda pode ser útil (…)».

O difícil mas muito bem concretizado trabalho de tradução, realizado por Joana Cabral, leva-nos a habitar não só aquele bairro e a vida de Momo, como também o seu pensamento expresso numa linguagem incorreta, intricada mas muito verdadeira e honesta. O seu modo de falar reflete as suas experiências e o seu coração, utilizando palavras simples para transmitir realidades que são como agulhas, por vezes - «Quando ela chegou ao cimo, já não tinha medo e eu também não, porque é contagioso. Dormimos lado a lado o sono dos justos. Pensei muito nisso e acho que o Senhor Hamil engana-se quando diz isso. Acho que são os injustos que dormem melhor, porque se estão a borrifar, enquanto os justos não pregam olho e preocupam-se com tudo». Sobre o direito à eutanásia, por exemplo, Momo afirma com confiança mas sem conhecer a justeza das suas palavras: «A Madame Rosa tem o direito sagrado dos povos de dispor de ela própria, como toda a gente. E se ela se quer fazer abortar, está no seu direito». Como dizia o Senhor Hamil, o pequeno Momo era uma criança muito sensível e isso tornava-o um pouco diferente dos outros.

Momo era árabe mas essa condição era-lhe presente sobretudo através deste Senhor Hamil, um árabe vendedor de tapetes que lhe ensinou a ler o Corão e tinha sempre consigo Os Miseráveis de Victor Hugo. «Durante muito tempo, eu não sabia que era árabe, porque ninguém me insultava. Só fiquei a saber na escola. Mas nunca andava à pancada, dói sempre quando batemos em alguém», conta-nos Momo.

Outros personagens pontuam a história e a vida dos dois protagonistas que, a pouco e pouco, por causa do relato da sua bondade para com a Madame Rosa, tornam-se também nossos amigos. É o caso do Doutor Katz, o médico que os seguiu até ao fim, o Senhor N´Da Amédée, «o maior proxeneta e chulo entre todos os negros Paris», o mais bem vestido também, que ia ver a Madame Rosa para que lhe escrevesse cartas à família, o Senhor Waloumba, cuspidor de fogo e varredor de ruas, que vivia com mais oito pessoas da sua tribo dos Camarões (todos juntos ajudavam a transportar a pobre judia que vivia num sexto andar), e, claro, a generosa Madame Lola - «Se toda a gente fosse como ela, o mundo seria completamente diferente e aconteceriam muito menos desgraças. Tinha sido campeão de boxe no Senegal antes de se tornar travestita e ganhava dinheiro suficiente para educar uma família, se não tivesse a natureza contra ela».

Conhecemos a história do pequeno Momo através deste grande gesto literário de Romain Gary que também nos ensina a perceber os sinais de esperança que normalmente estão escondidos nas pequenas coisas e na possibilidade de sermos surpreendidos pela sorte. Foi isso que acabou por acontecer com Momo quando conheceu Nadine, uma jovem de classe média que também não desistiu dele - «Bem, não vão acreditar em mim se vos disser que lá estava ela, à minha espera, naquela sala, não sou o género de gajo por quem se espera. Mas lá estava e quase senti o sabor de gelado de baunilha que ela me tinha oferecido».

Afirmando no final que «é preciso amar», Momo sacode-nos a alma com emoção e sentimento, deixando também a promessa de que se esforçará por gostar de nós, quando nós já estamos rendidos: «Acho que o Senhor Hamil tinha razão quando ainda regulava da cabeça e que não se pode viver sem alguém para amar, mas não vos prometo nada, logo veremos».

Publicado em 1975, o livro teve um êxito imediato, vendendo milhões de exemplares em todo o mundo. Foi traduzido em mais de vinte línguas e adaptado para o cinema num filme com Simone Signoret. Nesse mesmo ano, Romain Gary, com o pseudónimo Émile Ajar, recebeu o segundo Prémio Goncourt, sendo que até agora foi o único escritor a ser reconhecido duas vezes com este prestigiado prémio.

(Esta recensão foi publicada na Revista Vírus, nº4: www.revistavirus.net)

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