16 janeiro 2015

"Para acabar de vez com a Cultura…"

Não, não se trata de mais uma investida contra a produção cultural, nem sequer de uma diatribe obscurantista contra os seus agentes. Nem mesmo se reitera o disfarçado abandono da coisa cultural ao corredor burocratizado e amorfo de uma despromovida Secretaria de Estado. Trata-se, sim, de uma alusão. E nessa alusão uma maiúscula, no singular musculado de uma só palavra – “Cultura” –, que se propõe combater, minuscular, pluralizar…

Para acabar de vez com a cultura foi o título da tradução portuguesa de um conjunto de textos de Woody Allen. A justificação de tal título prende-se, talvez, com a índole irónico-absurda dos textos do realizador, imbuídos de uma dinâmica – cultural, hélas! – potencialmente destrutiva, irreverente, mas certamente marginal face ao sacrário intocável em que se nos apresentam as grandes narrativas culturais e os seus sujeitos. Da Filosofia à Literatura, da Música à História recente, nada lhe escapa, munido de uma espécie de poder caricatural de irreverência e mordacidade. Na verdade, o que está em causa é uma espécie de retoma da tradição a partir das suas margens, fora dos padrões que a legitimam, reequacionando discursos de uma espécie de não-lugar onde se mitigam dogmas, verdades instituídas, rochedos de conservadorismo.


É aqui, no cruzamento entre o que é mais propriamente criativo na palavra “cultura” e a sua capacidade de memória e de prolongamento do que já foi, que formas outras de expressão e de significado se inscrevem enquanto fenómenos culturais, numa anti-Cultura reparadora e certeira. É também a partir desta margem, deste reduto exterior e de certa forma indomesticável, que hoje escolhemos chamar à liça, para acabar de vez com a Cultura, a voz e as palavras da Capicua, no modo como nos ensina, a partir de “A mulher do Cacilheiro”, que a voz excluída, nas muitas exclusões que uma voz pode conter, encerra em si mesma o silêncio dos séculos e a mordaça de todos os dias. 




Não é uma metáfora, já que esta canção é um retrato. Fala-nos de uma mulher que, na sua travessia quotidiana de cacilheiro, não deixa de ser uma margem sem aproximação, na sua cultura irredutível ao padrão hegemónico da tal maiusculada Cultura. Vejam-na.
Esta mulher de “pele negra” e de “cabelo curto” sabe, intui ou mesmo naturaliza – sujeita que está ao poder docilizador da Cultura – que o seu lugar é acessório. Do outro lado da Cultura, do lado de lá da Democracia só de alguns, eterna sombra sem sujeito, esta mulher todos os dias faz uma viagem impossível. Talvez a tenham discretamente ao vosso lado, quando desfilam numa manifestação contra o fanatismo, pela liberdade de expressão, repudiando o sangue derramado injusta e cobardemente. Ela está lá convosco, porque ela sabe estar lá quando é preciso, ou quando ela própria é precisa, ou simplesmente quando a deixam estar por lá. Porém, a viagem dela não acaba e há pontes que nunca foram transpostas. Ela está lá, gritando pelos padrões “europeus” que devem ser comuns às culturas que perfazem essa Europa, mas que são antes pretexto para o agravar dos efeitos uma mesma e Única Cultura opressora. E vai ser mais uma vez essa “imigrante”, essa “precária”, essa “sem-papéis” que amanhã vai ser vítima de buscas sem mandato, de ameaças de expulsão para margens mais longínquas, de olhares de soslaio e de chantagens por parte das pessoas, dos poderes, de quem marcha com ela. Hoje ela desfila convosco, sem saber que dá forças ao que amanhã lhe tornará a viagem mais penosa.

Acabar de vez com a Cultura, pois… Esta, que teima em confundir-se anacronicamente com o conceito obsoleto de “civilização”, aí, nesse centro todo-poderoso onde ainda se decide ao atropelo das vozes de margem. Essa Cultura teimosa e excludente, que concede em pespegar-se, devidamente resguardada por todas as guardas pretorianas, no meio da Place de la République, para abafar mais eficazmente todas as mulheres, de todos os cacilheiros e de todas as fronteiras sem decisão.

Abre-se ao acaso o tal título de Woody Allen onde, num dos textos, um guarda-portão barra a entrada a todas as pessoas que se não chamem “Júlio”. Caricatura, com todo o seu poder de contra-Cultura; ou ironia… para acabar de vez com a Cultura.

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