25 março 2015

Rendimento Básico Incondicional: escolhas de um debate


Dois argumentos prejudicam o debate em torno do Rendimento Básico Incondicional (RBI), rejeitá-los é uma primeira necessidade para avançar. O primeiro é o que nos diz que quem à esquerda rejeita a ideia de um RBI fá-lo por assumir uma concepção sacralizada do papel do trabalho como expressão única da emancipação humana. O culto do trabalho, atacado por Lafarge naquilo que dizia ser a dupla loucura dos trabalhadores, a de "matarem-se no trabalho e vegetarem na abstinência", mereceu desde há muito uma crítica contundente das correntes que à esquerda sempre associaram a necessária emancipação pelo trabalho ao objectivo adjacente da superação do próprio trabalho nas suas formas mais cruéis (assalariamento). O segundo argumento é o que, afirmando o direito a um patamar material que respeite a dignidade humana, o faz depender necessariamente da instauração de um RBI. Ora, a libertação da necessidade material e a afirmação dum princípio universal à vida associado à saciedade individual é uma consigna que nos une e que dispensa moralismos. É a via para lá chegar que está cheia de bifurcações e nos impõe escolhas.

Posto isto, três questões sobre um debate em andamento:

1. Afinal, está ou não o fim do emprego em causa?

A petição pela instauração de um RBI dirigido à Comissão Europeia era transparente no diagnóstico, "O crescente aumento da pobreza, precariedade, desemprego, insegurança da população e os enormes avanços tecnológicos que reduzem drasticamente a necessidade de mão-de-obra humana, revelam a necessidade urgente da adopção de uma estratégia diferente daquelas que têm sido aplicadas até agora." Mais recentemente, o movimento acrescentava na sua página, "Mesmo o pouco trabalho disponível é cada vez menos remunerado, esta é a tendência, o investimento em automação de substituição de mão de obra e inteligência humana é o futuro. A tecnologia não recebe ordenado, não faz descontos, não há absentismo, não reclama direitos, só tem o investimento e a manutenção, muita nem precisa de operador." A implementação de um RBI responderia, portanto, a essa crise do emprego, sendo contingente à inexorável erosão salarial.

André Barata e Roberto Merrill, dois dos principais impulsionadores do debate sobre o RBI, divergem dessa perspectiva. Merril afirma que "O ponto é que mesmo numa sociedade de pleno emprego o RBI continua a ser uma medida fundamentalmente justa, teoricamente não menos justa do que numa sociedade de desemprego de massa. Tornar a justificação do RBI dependente do contexto de emprego ou não é uma estratégia que enfraquece a justificação do RBI, e que também hostiliza desnecessariamente os defensores do pleno emprego." Ao que André Barata acrescenta "A justificação do RBI não está dependente de haver ou não trabalho para todos. É válida para pleno emprego como para um contexto de falta de emprego. O que a justificação do RBI nos apresenta é uma modificação da concepção de trabalho." A questão da relação salarial e da criação de emprego é assim encerrada e no seu lugar apresentados o tema da justiça (o RBI é um direito) e o da concepção do trabalho (o RBI é uma relação extra-salarial). Vale a pena pensar o seu desdobramento.


2.O RBI é equivalente aos serviços públicos?

André Barata, na sua resposta ao texto do Francisco Louçã, fala-nos dessa justiça, "A ideia é estender os direitos sociais dos cidadãos a um rendimento básico, da mesma forma que já cobrem, ou deveriam cobrir, de forma universal o acesso à escola pública, aos serviços de saúde, à protecção social.Por que razão há-de a escola poder ser um direito universal mas um rendimento mínimo decente já não?". Sendo este um argumento muitas vezes repetido pelos defensores do RBI, três razões o contrariam.

Em primeiro lugar, o direito universal ao SNS, por exemplo, não corresponde de forma alguma a uma utilização dos seus serviços de uma forma equivalente e identicamente distribuída pelos indivíduos (que é o princípio basilar do RBI). A universalidade do serviço assenta na solidariedade dos mais saudáveis que contribuem para o tratamento dos menos saudáveis. O mesmo acontece com a educação e segurança social. Esse equilíbrio solidário é a força do sistema.

Em segundo lugar, a pujança dos serviços públicos radica na capacidade de utilizar em larga escala aquilo que são as nossas quotizações salariais, que quando usadas de forma individual são consideravelmente mais ineficientes. Quando o António Dores afirma que a implementação de um RBI teria como vantagem "abolição do fornecimento gratuito de alimentos a crianças com famílias, nas escolas ou noutras instituições.", está a propor uma solução individualizada e mercantilizada para uma necessidade que é mais eficientemente suprida pela via coletiva, que tanto está menos exposta à lógica do mercado como é capaz de contrariar a sua lógica de acumulação.

Por fim, o RBI não se equivale a um serviço público universal porque, ao contrário dos restantes, exige uma mobilização financeira que é conflitiva com o atual salário direto de quem vive do trabalho. E aqui, entramos necessariamente na questão do financiamento. Sabendo nós, deste debate, que um RBI de 420 euros mensais exigiria uma mobilização de 53% do PIB, estaremos de acordo que falamos de uma grande transformação do modelo tributário, e não de uma pequena etapa para um sistema mais justo. Apesar dos defensores do RBI falarem numa miríade de fórmulas de financiamento, apenas três foram concretamente apresentadas e discutidas no espaço político. Vejamos.

3. O financiamento do RBI elimina a luta pelo salário direto?

Alguns promotores do RBI falam na possibilidade do financiamento ser realizado exclusivamente via IVA, levando mesmo à abolição de impostos como IRS ou IMI; esta proposta foi submetida à comissão de programa da candidatura LIVRE/Tempo de Avançar. Sendo o IVA um imposto indireto está claro de ver que o ônus desta solução recairia sobre os salários, sobretudo os mais baixos, pressionando os custos de produção e penalizando quem recebe menos. Para além do mais, os 420 euros não valeriam o mesmo, pois seriam engolidos pela pressão inflacionária do aumento do IVA.

O euro-dividendo ou a responsabilização do orçamento comunitário nesta matéria são outras das soluções, a segunda defendida pelo PAN nas ultimas eleições europeias. O efeito inflacionário dessa criação fictícia e os seus efeitos no salário, para não falar na masmorra austeritária em que se transformou a UE, já foi assinalada, não obstante, fica a questão de saber quais seriam os efeitos geo-políticos de um RBI a 420 euros em Portugal e de 1700 euros na Alemanha, uma vez que se defende a variação indexada ao salário médio de cada país.

A terceira e mais consistente solução para a instauração de um RBI passaria pela alteração radical do IRS. Nesse modelo bem contextualizado por Philippe Van Parijs, os muito pobres teriam de pagar menos e os muito ricos pagar mais, mas como estes últimos são minoritários na sociedade a solução só poderia passar, também, por um aumento do imposto sobre os menos pobres. Como o próprio explica: “Os trabalhadores que recebem salários modestos, cuja alíquota de imposto marginal precisaria ser aumentada, estão também entre os principais beneficiários da adoção de um sistema de renda básica, uma vez que a tributação maior de seus salários ficaria abaixo do nível da renda básica que eles passariam a receber.”. Retira-se, portanto, ao salário o que se quer acrescentar em alocação universal.

Esta transformação confronta-nos com escolhas decisivas à esquerda. À partida a de saber se o combate à exploração geradora da necessidade e a sustentação dos serviços públicos assentes no salário indireto passam pela diminuição ou alocação universal dos salários médios? É que a defesa de uma transformação na concepção do trabalho não apaga as duas lógicas marcantes do capitalismo no século XXI, a da expansão da relação salarial, pois nunca na história tantos dependeram exclusivamente do salário para sobreviver, e a da intensificação da taxa de exploração que limita a distribuição do trabalho por todos.

 Neste mundo onde habitamos, a reprodução do capital ainda dita a apropriação do trabalho e a desorganização da produção, e nesse cenário, os salários diretos ainda são a nossa melhor defesa. Neste mês em que se completam cinco anos da aprovação do PEC I, o marco inaugural na era da austeridade, vale a pena perguntar se os salários dos professores e enfermeiros estariam mais seguros se transformados em alocação universal à disposição do Estado? O avesso é que parece ser verdadeiro.

Em suma, tanto o RBI não é equivalente a um serviço público como não responde ao combate necessário pela distribuição do trabalho. É fraco como uma justiça distributiva e curto na capacidade de revolucionar as relações de produção e propriedade. A mobilização social de que precisamos neste momento decisivo implica sermos claros no tipo de sujeito político que queremos construir, pelo que a defesa de um RBI ganharia em aprofundar as suas propostas que ultrapassam o campo do próprio rendimento, como é o caso da ocupação legitimada de casas desocupadas e a implementação de um salário de disponibilidade efetivo em profissões com características de intermitência, como é o caso dos artistas. É que este tipo de solução encontra eco em classes e grupos particulares da sociedade, acumulando um princípio de oposição tão necessário para a transformação da economia dominada por um sistema financeiro parasitário.

Da mesma maneira, a crítica do sistema condicional de apoios sociais não nos desconvoca do embate necessário contra a estigmatização e o controlo social criados nestes últimos anos. Quando o governo grego estabelece que 300 mil famílias possam não passar frio em suas próprias casas e para isso mobiliza um recurso condicional, estamos perante esse campo do possível.

Nunca na história tivemos tanta capacidade de produzir o necessário para todos, nem nunca estivemos tão atrasados nos combates que façam esse outro mundo possível.

1 comentário:

  1. Como evocas um proto-argumento meu respondo sobre esse ponto. Escreves, mas parece mais uma figura de estilo e não uma refutação, que "A questão da relação salarial e da criação de emprego é assim encerrada": essas questões não são encerradas, simplesmente não foram explicitamente tratadas nessa ocasião. Mas a verdade é que esses temas já foram um pouco tratados em 2013 na minha resposta (publicada no Dinheiro Vivo) às objecções da Raquel Varela ao RBI, objecções que se baseiam na sua defesa do pleno emprego. Tentei explicar que o RBI deve ser compreendido como uma maneira não compulsiva de atingir o pleno emprego, o que é claramente uma vantagem face ao método compulsivo dos que defendem o pleno emprego. Por enquanto ainda ninguém respondeu aos meus argumentos, mas tudo bem . Sobre a analogia entre RBI e acesso à saúde e educação deixo o André Barata responder. Sobre o financiamento, talvez o Pedro Teixeira te possa esclarecer o seu modelo de financiamento mas à primeira vista nada do que sugeres está implicado no modelo que ele tem preparado e que com um pouco de sorte será publicado em breve ( mas se lhe enviares um email ele sem dúvida que te poderá enviar e explicar com prazer a sua simulação de financiamento para Portugal). Em todo caso obrigado pelo esforço louvável em desenvolver o dialogo. Um abraço, Roberto Merrill

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