Recentemente
tive a oportunidade de visitar a clínica e farmácia social no
município de Helleniko, um subúrbio de Atenas. Situada nos terrenos do antigo
aeroporto, encerrado em 2001, esta clínica
(em inglês) funciona desde Dezembro de 2011 para enfrentar as
políticas de austeridade que excluem uma parte importante da população
aos cuidados de saúde. Mas mais que responder à emergência social,
iniciativas como estas são uma resposta cidadã, coletiva e
solidária de denúncia quotidiana das políticas do governo responsáveis por esta exclusão, bem como de mobilização social para resgatar este direito e
lutar por um sistema nacional de saúde para todos e todas. Como referiu um médico
voluntário, esta clínica não existe para ajudar o
governo mas, pelo contrário, para expor os resultados das suas
políticas e lutar por uma saúde pública, universal e de qualidade.
É, por isso, que iniciativas de solidariedade como esta têm
recebido hostilidade por parte do governo que tenta por vários meios
acabar com elas.
Esta
clínica conta com 230 voluntários, a sua maioria pessoal médico e
de enfermagem que oferece, semanalmente, cerca de duas horas do seu
tempo. Muitos destes profissionais trabalham em hospitais públicos
cujas administrações rejeitam tratamentos a pacientes que, por
estarem desempregados ou serem imigrantes indocumentados, têm de
pagar quantias de que não dispõem. É que na Grécia só quem
desconta para o sistema de saúde por via do seu contrato de trabalho
ou associação profissional tem direito à saúde pública. Com a
subida do desemprego estima-se que cerca de 3 milhões de pessoas
estejam nesta situação, muitas das quais sem rendimentos para pagar
tratamentos de saúde. Cortes acima dos 40% no orçamento público de
saúde, encerramento ou fusão de hospitais, redução do número de
camas, despedimento de profissionais de saúde, junto com o aumento
das tarifas de acesso a centros de saúde de 3 para 5 euros,
comparticipação de 15% em exames clínicos e de 25% em material
ortopédico e respiratório, 25 euros de taxa de admissão em
hospitais públicos, e taxa de 1 euro por prescrição médica, são as
políticas responsáveis por este descalabro (ver aqui relatório da
ONU).
Mas
esta clínica não se limita a prestar cuidados de saúde a quem não
pode pagar. Através dos casos que recebe, pressiona as
administrações hospitalares a aceitar os pacientes que necessitam
de tratamentos através de protestos de rua, denúncia pública,
pressões internas do pessoal médico, etc. Por diversas vezes expôs
as mentiras do Ministro de Saúde ou a sua falta de competência para
garantir a saúde pública por vários meios, incluíndo pressão
mediática internacional (reportagens na CNN, BBC; visita de
especialistas independentes da ONU; apoio de grupos de solidariedade
internacional, muitos ligados a sindicatos; …). Igualmente, a
clínica apoia todas as situações urgentes na vida das pessoas com que contata, seja a enfrentar cortes de eletricidade ou água, risco
de perda de habitação, entre outros, por protestos frente aos
tribunais, às empresas, denúncia pública, etc. E tudo isto em
coordenação com outras estruturas de solidariedade auto-organizadas
da região, não só na área da saúde. Para a saúde, desde 2013 que
montaram a plataforma web “Health
Monitor” (em grego) para monitorizar tudo o que se passa a
nível da saúde pública, sistema nacional de saúde, das pessoas
sem cobertura pública, pacientes com cancro, sida, esclerose
múltipla, diabetes, saúde mental, mobilização do pessoal médico
e clínicas sociais.
Em
dois anos de atividade, esta clínica prestou auxílio em mais de 18.000 ocasiões, abrangendo áreas diversas que vão desde a clínica geral, pediatria, psiquiatria a tratamentos dentários. Esta é uma das maiores iniciativas da região de
Attica porque teve a oportunidade de contar com o apoio da autarquia,
até muito recentemente liderada pelo Syriza, para o espaço e
pagamento de luz, água e telefone. Tudo o resto, como equipamentos
clínicos, medicamentos, etc, é assente em doações de médicos com
clínicas privadas, eventos de angariação (e.g. teatros infantis
onde o público “paga” em medicamentos), participação cidadã e
trabalho voluntário. As decisões sobre o seu funcionamento e ações
a desenvolver (e.g. protestos, comunicados de imprensa) são tomadas
em assembleias coletivas em que quem quer participa. Assim é
porque esta iniciativa é auto-organizada desde a sua origem, porque
quer envolver a sociedade na luta contra as políticas do governo em
solidariedade, e porque não compete à autarquia assumir as
responsabilidades do governo e compensar a sua incompetência nem
substituir formas auto-organizativas de luta popular. As pessoas que
frequentam a clínica social sabem porque ela existe e os seus
objetivos e são chamadas a envolver-se coletivamente na resposta aos
problemas sociais. Sabem que é uma forma de protesto dos médicos e
enfermeiros contra as políticas de austeridade e que lutam por um
sistema universal de saúde pública, indo muito além de qualquer
interesse corporativo. Sabem que o seu caso individual não é único
nem acidental, mas que é um problema coletivo cujas causas estão
nas políticas irresponsáveis da troika e governo. Sabem que elas
não tiveram azar, mas que são vítimas de um ataque brutal aos seus
direitos básicos. Sabem que a saúde é um direito e não uma
regalia ou um benefício.
A
localização da clínica tem também uma importância simbólica
forte. O antigo aeroporto ocupa uma área de várias centenas de
hectares ao longo de uma extensão apreciável de frente marítima. A
sua localização é, portanto, muito privilegiada. Desde a sua
desativação que a população e a autarquia se têm mobilizado para
defender que aí seja implementado um parque público contra os
planos de governo de vender a privados para construção imobiliária
de luxo, seja para turismo ou residência. Venda, aliás,
concretizada há uns dois meses a um investidor grego, parte do
grande capital do país. Esta venda compatibiliza-se com os planos do
governo grego para a privatização da zona de costa e acesso às
praias. Recentemente, o Ministro das Finanças propôs uma lei
que avança neste sentido, nomeadamente ao permitir que grandes
investidores possam comprar zonas junto à costa e aí desenvolver os
seus projectos, prevendo ainda amnistiar as construções ilegais
existentes nessas zonas. Após as eleições europeias e a entrega de
uma petição com mais de 122 mil assinaturas, esta proposta de lei
está sob revisão. Se esta é uma pequena vitória, não significa
um recuo. O alerta popular não abrandou, até porque leis como esta
ou a venda deste terreno a privados ameaça o usufruto público
destes espaços e a atividade solidária de estruturas como a desta
clínica.
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